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Restauraçao de templo português revela arte do século XVI
Por Do Diário do Grande ABC
26/12/1999 | 14:50
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O mais importante monumento português vai passar a fazer parte da história da arte nao apenas por sua arquitetura, mas também como um local com algumas das melhores pinturas do Século XVI. Na capela-mor do Mosteiro dos Jerônimos, na capital portuguesa, uma restauraçao dos retábulos revelou um artista maneirista pouco conhecido, com qualidade que se compara à de Michelangelo.

"Foram pinturas feitas entre 1570 e 1572, por um pintor que era considerado até agora como secundário, Lourenço de Salzedo. Quando começamos a restauraçao, nao podíamos imaginar que estávamos perante um dos grandes pintores maneiristas", afirma Isabel Cruz de Almeida, diretora do mosteiro.

Com sua estrutura gótica e elementos decorativos ligados aos descobrimentos, o Mosteiro dos Jerônimos já era um dos principais pontos turísticos de Lisboa. Agora, segundo Isabel, sua importância aumenta como um dos mais importantes monumentos europeus. "Mostra que Portugal nao só tinha uma característica própria da sua arte no Século XVI, o estilo manuelino, como tinha contatos com o que se fazia de mais moderno no resto da Europa".

As pinturas de Salzedo estao abertas para visitas do público desde quinta-feira mas, segundo Isabel, deverao ter limitaçoes. "Temos de manter as condiçoes para que elas se mantenham. O piso da capela-mor é calcário, o que nao suporta uma grande quantidade de pessoas. Além disso, a Igreja é usada para cerimônias religiosas e temos de compatibilizar isso." Até agora, a capela-mor era vedada ao público, apenas sendo usada durante os serviços religiosos.

Tendo vivido em Portugal desde que foi contratado para pintar os retábulos dos Jerônimos até sua morte, Salzedo permaneceu pouco conhecido na Europa. "A pintura dele tem o brilho, a força e a cor que estao muito perto da escola maneirista italiana e de Michelangelo. Supoe-se que tenha estudado na Itália para poder dominar a pintura desta forma".

Segundo Isabel, até agora, os retábulos de Salzedo estavam escondidos embaixo de outras restauraçoes, das quais as mais importantes foram nos séculos XVII e XIX. "Naquela época, tinham uma idéia diferente do que era o restauro de uma pintura. O restauro era uma intervençao em que o restaurador, geralmente um pintor reconhecido na época, deixava uma marca pessoal".

Uma das grandes modificaçoes foi feita entre 1673 e 1675 por Joao Baptista Pinto da França. "No caso era um bom pintor, mas a restauraçao seguiu o programa ideográfico da contra-reforma", conta Isabel.

O programa da contra-reforma era a ideologia adotada pela Igreja Católica depois do Concílio de Trento, em combate ao surgimento dos protestantes. A contra-reforma procurou diminuir o caráter humano das figuras divinas, ao contrário do que se procurava ressaltar no início do Renascimento.

As mudanças na pintura, segundo Isabel, incluíram a cor e as expressoes e até personagens. "O artista deixa de retratar um mundo com cores fortes. Cristo deixa de ser sofredor, passando a ser mais sereno. Nossa Senhora nao aparece mais como mater dolorosa, mas com um olhar de serenidade."

As alteraçoes incluíram até as personagens. "Num dos painéis, havia três figuras e no restauro verificou-se que eram originalmente quatro. Seguindo a reforma tridentina, haviam eliminado Maria Madalena, transformando-a em Sao Joao Evangelista."

No total, em algumas partes dos retábulos foram encontrados sinais de oito restauros, em diferentes camadas. Além de Pinto da França, um segundo restauro importante de que há documentos foi feito em 1820 por Inácio Coelho da Silva Valente. "O trabalho de Valente, no Século XIX, é de um artista de menor qualidade. Ele deteriorou e empastou as figuras, mas nao tinha a intençao de modificar os painéis", relata Isabel.

Poder - Os retábulos foram pintados por ordem de dona Catarina da Austria, viúva de dom Joao III e nora de dom Manuel. Segundo Isabel, mandar pintar os retábulos nos Jerônimos foi uma forma de mostrar o poder que ela detinha: "Tratou-se de uma enorme manifestaçao de poder, em que ela nao olhou a meios. Foi pouco depois da morte de dom Joao III e ela quis demonstrar o seu poder através da capela-mor do monumento mais significativo do tempo".

Para Isabel, um dos exemplos da manifestaçao do poder foi ter ocupado a maior parte da capela-mor com os retábulos. "Sobrou espaço para apenas quatro túmulos na capela, de dom Manuel, de sua esposa, de dom Joao III e dela. Todos os outros filhos de dom Manuel tiveram de ser enterrados em outras partes da Igreja."

Uma das demonstraçoes da qualidade de Salzedo é o fato de ter sido escolhido por dona Catarina. "A rainha poderia ter contratado qualquer outro pintor, tendo tido contatos com o espanhol Gaspar Becerra, com o flamengo Franz Floris e com o genovês Francesco de Urbino, mas por recomendaçoes optou por Salzedo."

O pintor, nascido na regiao da Andaluzia, na Espanha, Salzedo fixou-se em Portugal. Além dos Jerônimos, outras de suas principais obras estao no mosteiro de frades jerônimos de Vale Benfeito.

O especialista da história da arte Vítor Serao destaca que a pintura de Salzedo é anterior à de Zuccari e Tibaldi realizadas no Escorial e considera que, se nao tivesse morrido jovem, já teria sido considerado um dos grandes pintores europeus da época.

Restauro - Para recuperar as pinturas originais de Salzedo, foram necessários dois anos de trabalho. Inicialmente, eram seis tábuas, mas com a colocaçao do sacrário uma das pinturas foi perdida. No total, foram gastos mais de US$ 300 mil para recuperar a capela-mor dos Jerônimos. "Inicialmente, prevíamos apenas o restauro dos retábulos, mas depois vimos que nao fazia sentido sem uma recuperaçao de toda a capela-mor", diz Isabel.

Entre as medidas para a conservaçao dos painéis, foram adotados filtros para impedir a entrada de raios de sol, que fazem os quadros perder a cor, coberturas para evitar infiltraçoes e foi adotada uma luz artificial que ajudar a conservar, além de permitir às pessoas verem melhor os painéis.




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