Nas últimas semanas, o cinema perdeu dois dos mais dignos representantes da comédia. Primeiro, o italiano Vittorio Gassman. Logo em seguida o norte-americano Walter Matthau. Azar do humor, o gênero imbatível que segunda-feira, 24 de julho, lembra os 20 anos da morte de outro de seus mais brilhantes discípulos: o inglês Peter Sellers. Na história do cinema, poucos foram os humoristas tao versáteis quanto aquele inglês de Southsea, Hampshire, que nasceu em 1925 e, em 30 anos de carreira com 52 filmes, criou quase 60 tipos diferentes, muitos deles clássicos.

Quem nao se lembra, por exemplo, do aloprado inspetor Clouseau da série A Pantera Cor-de-Rosa? Ou do videota personagem de Muito Além do Jardim? Ou, ainda, dos quatro personagens irresistíveis que fizeram todo o mundo rir no antibelicista Doutor Fantástico, de Stanley Kubrick (1928-1999), que muitos consideram o melhor trabalho do ator?

Sellers costumava dizer que tinha a sensaçao de que o personagem de um filme invadia seu corpo como se ele fosse um médium, e que isso, para ele, era um tanto assustador. Talvez, levando-se em conta que tinha uma capacidade quase sobrenatural para imitar vozes e sotaques e viver no cinema personagens tao díspares, ele nao se ajustava aos tipos, eram os tipos que se ajustavam às suas características.

Em muitas de suas comédias, mesmo naquelas com humor menos trabalhado, uma ou outra cena já valia o preço do ingresso. Foi o caso, por exemplo, do gostoso Um Convidado Bem Trapalhao (The Party), de 1968. Primeiro, na sua irresistível gozaçao sobre uma seqüência do velho Gunga Din, Sellers tocando interminavelmente a sua corneta, no alto da montanha, para alertar as tropas inglesas na guerra contra os hindus. Depois, na mesma obra, o momento em que, como ator indiano que vai estrear em Hollywood, ele acidentalmente explode o set de um forte que nao poderia ser reconstituído porque a produçao nao tinha mais dinheiro.

Foram pequenos, mas brilhantes momentos na carreira do ator. Se alguém perguntasse o que poderia haver em comum entre uma velha gra-duquesa, um indiano atrapalhado, um cientista de origem alema e um detetive francês, a resposta só poderia ser uma: Peter Sellers, sinônimo, quase sempre, de sonoras e gostosas gargalhadas. Driblou dois ataques cardíacos, o primeiro em 1964, mas nao resistiu ao terceiro. Logo após ter vencido a primeira batalha contra o coraçao, Sellers deixou a clínica e se dirigiu à redaçao de um jornal de Paris e pediu que lhe mostrassem o seu necrológio, ou seja, o que publicariam sobre ele caso tivesse morrido. Leu e achou curto demais. Garantiram-lhe que, quando morresse, o material seria muito mais volumoso.

E foi. Sellers, como os grandes cômicos do cinema, era daqueles que nunca perdiam a oportunidade da última piada, principalmente quando eram ingleses, mestres no humor negro e na arte de brincar com a própria morte.

Aos 5 anos Sellers já estava nos palcos, acompanhando os pais, artistas de music hall em turnês pela Inglaterra. Foi baterista de orquestra de dança até 1943, divertiu as tropas inglesas na India, Ceilao e Birmânia, aprendeu a imitar sem dificuldades as posturas dos ingleses colonialistas, dos sikhs e dos hindus e, no retorno da guerra, em 1951, junto com Harry Secombe e Spike Milligan, criou na BBC o The Goon Show, programa cômico revolucionário que durou sete anos.

Sellers estreou no cinema em 1951 num papel pequeno em Penny Points to Paradise. Mas só em 1955 ele obteve seu primeiro grande papel no hoje clássico O Quinteto da Morte, obra-prima do humor negro dirigida por Alexander Makendrick, deliciosa reuniao de suspense e humor sarcástico tipicamente britânico. Em 1959 já faria três papéis diferentes em outro clássico, O Rato Que Ruge, um deles o da gra-duquesa Gloriana, de um condado inglês que, sem grana nos cofres, planeja invadir os Estados Unidos e, perdendo a guerra, claro, ser ressarcido pelos americanos.

Participou de Lolita, de Kubrick, em 1962, e em 1964, com o mesmo diretor, interpretou o antológico Doutor Fantástico, defendendo quatro personagens absolutamente extraordinários, do presidente dos Estados Unidos até o cientista nazista Von Brown, evidentemente uma gozaçao a Von Braun, o alemao que participou da invençao da bomba atômica trabalhando para os norte-americanos.

Mas, um ano antes dessa imperdível comédia atômica em que Kubrick, com um humor de mestre, desceu o sarrafo na corrida armamentista, Sellers já estreara no cinema de Hollywood em A Pantera Cor-de-Rosa, inaugurando a série de cinco comédias dirigidas pelo excelente Blake Edwards. Aí, pôde criar o personagem que o imortalizou, o inspetor Clouseau, hilariante composiçao de gênio bestial e besta genial, um tipo incomum de detetive - pai do Columbo dos anos 70, com Peter Falk - desastrado que desvenda seus casos mais pelos erros dos inimigos do que pelos acertos dele.

Clouseau tornou Sellers um sujeito rico mas, ao mesmo tempo, depressivo, instável emocionalmente, explosivo e ciumento. Casou-se quatro vezes, uma delas com a atriz Britt Ekland. Para quem acha que o inspetor aloprado foi sua melhor criaçao, Sellers dizia que nao: preferia o jardineiro de Being There (Muito Além do Jardim), que fez em 1979 sob a direçao de Hal Ashby, obra para rir e refletir, baseada no romance O Videota, de Jerzy Kosinski.

Nas locadoras - Para quem quiser relembrar o humor de Peter Sellers, as locadoras de vídeo têm à disposiçao alguns títulos. O leitor pode alugar Quinteto da Morte, A Valsa dos Toureadores, A Pantera Cor-de-Rosa, A Loteria da Vida, Sete Vezes Mulher, Um Convidado Bem Trapalhao, Onde Dói Mais?, O Otimista, A Volta da Pantera Cor-de-Rosa, A Nova Transa da Pantera Cor-de-Rosa, Fantasma do Sol do Meio-dia e Muito Além do Jardim.