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‘O Brasil precisa mandar mensagens corretas aos árabes’
Por Nilton Valentim
Do Diário do Grande ABC
08/04/2019 | 07:00
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André Henriques/DGABC


As exportações de carnes brasileiras para a comunidade islâmica mundial atingiram em 2018 a marca de US$ 11 bilhões (R$ 43 bilhões). Foram 1.348.675 toneladas. Esse mercado, entretanto, corre riscos em razão de atitudes tomadas pelo governo brasileiro, dentre elas a intenção de mudança da embaixada do País em Israel, de Tel-Aviv para Jerusalém, bem como a falta de diálogo com integrantes das nações árabes, pois outros países estão de olho nesse filão, alerta o empresário de São Bernardo Ali Saifi. Ele emite o certificado de que a carne se encaixa no conceito halal (lícito em árabe), imprescindível para a alimentação dos muçulmanos.

O que é um alimento ou produto halal?

A palavra halal é um termo usado para tudo aquilo que é lícito, legal, permitido. E o contrário é o haram, para tudo o que é proibido. No islamismo, tudo o que Deus e o seu profeta permitiram ou autorizaram para nosso consumo, é halal. Inclusive atos, pois vale para o nosso comportamento. Passar no sinal verde é halal, no vermelho, haram. Alimentos halal são os permitidos para o consumo dos muçulmanos, da religião islâmica. Basicamente, somos proibidos de consumir qualquer coisa que tenha contato com carne suína ou seus derivados.

Por que os islâmicos não consomem porco?

Nós acreditamos que Deus nos criou como um teste. Ele diz no Alcorão que nos criou para sua adoração e cumprir o que Ele quer. E existem alguns desafios em nossas vidas. Quando vem a palavra ‘porque’, a primeira resposta é que não consumo carne de porco porque Deus proibiu, e isso é suficiente para mim. A segunda, baseada na confiança que tenho com Deus, é que Ele não proíbe nada que faça bem. Deus criou uma linha enorme de animais. De centenas de milhares, ele só proibiu carne de porco, animais carnívoros e algumas aves de rapina.

Além da carne suína, o que mais não pode ter no alimento halal?

A carne de porco e seus derivados. Os animais permitidos por Deus, como boi e frango, precisam respeitar uma forma de abate. Não pode ser animal afogado, torturado ou estrangulado. Deus autoriza você tirar uma vida para consumir. Não pode maltratar o animal. Quando abater, tem de fazer como Deus falou. O profeta diz que se tem de matar, que mate da melhor forma possível. Ao degolar o animal do modo que fazemos, o animal se mexe, mas, como falta sangue no cérebro, o corpo fica anestesiado. Quando ele perde a pressão no cérebro, fica uma anestesia geral e faz com que o coração bata mais forte, e o sangue sai em maior quantidade. E isso é bom, pois as doenças estão no sangue. E temos de purificar a carne do melhor jeito possível. Quanto mais sangue sai, mais é purificada.

Tecnicamente, são necessárias adaptações para a realização do abate halal?

O Brasil já está especializado nisso, abriu vários mercados e cresceu nessa área. Existem várias portarias do SIF (Serviço de Inspeção Federal) que visam melhor alimentar as pessoas e também garantir o bem-estar animal. Precisamos que a degola seja feita de forma apropropriada. Se em algum frigorífico isso não está sendo feito, talvez sejam necessárias adaptações.

Do ponto de vista econômico, o Brasil ainda é o maior exportador do mundo de carne halal?

Somos, mas se o novo governo não aprender a lidar com os países árabes, podemos perder essa posição.

O país está falhando nesse quesito?

O Brasil precisa aprender com os governos anteriores. E quando digo isso não estou defendendo PT nem PSDB, ou MDB. Com tudo o que passamos no Brasil, todos os partidos souberam, nesse ponto, a importância desse mercado.

E isso passa pela possibilidade da mudança da embaixada em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém?

Também. Os países árabes e o mercado islâmico, há décadas, têm o Brasil como parceiro, como amigo, parceiro econômico e diplomático, sem nunca pedir nada em troca. Não pediu para participar de guerra, não pediu para cortar relação com quem se diz inimigo dos árabes. Respeitaram a posição do Brasil de ter boas relações com todos. De repente o Brasil decide dar as costas para eles. Não é assim que funciona. Quem salva a balança comercial é o agronegócio. Quando aconteceu o episódio da (Operação) Carne Fraca, alguns países vieram ao Brasil. Eles pensaram em cortar (as encomendas), mas os convidamos para visitar o País. O vice-ministro da Agricultura do Iraque veio e disse: ‘Olha, vocês não precisam me convencer. Eu adoro a produção brasileira, mas são vocês que estão falando mal de seus produtos’. Aí liberou a produção. O pessoal tem uma visão positiva do Brasil. De repente, depois de décadas, o Brasil decide que os árabes não são tão essenciais. Aí fica difícil. A Arábia Saudita há tempos quer reduzir a dependência do frango importado. Hoje, 50% do que eles consomem sai do Brasil. É arriscado para eles ficarem dependentes, mas sempre tiveram o Brasil como parceiro. De repente não somos mais tão amigos. Fica difícil você chegar lá e negociar. Eles já querem reduzir, e o Brasil não acena para eles.

O presidente Bolsonaro usou as expressões namoro e noivado em Israel. Os árabes estão vendo o relacionamento mais como traição, então?

Não sei se é namoro ou traição. O que posso dizer é que adequado não está. O presidente foi para Israel. Eu, como muçulmano, não reconheço o estado de Israel, mas o Brasil reconhece. Ele deveria ter falado com os dois lados. Todos os presidentes sempre fizeram isso e nunca os países árabes reclamaram. Souberam entender. Pelo contrário, sempre contaram que o Brasil fosse uma via, um dos países capazes de negociar e ajudar nos acordos de paz. Mas parece que esquecemos desse papel.

Em termos práticos, essa perda de confiança pode significar quanto de perdas?

Isso é difícil mensurar. Mas se os países árabes tirarem 10% do market share (participação no mercado) e passarem à Europa ou Estados Unidos, se eles compram 1,3 milhão de toneladas por ano, estamos falando de 130 mil toneladas. Uma brincadeira dessa é um valor alto. Se começarmos a atacá-los, eles passam a comprar de outro.

Certamente existem países de olho nesse mercado.

Sim, hoje os players deste mercado são os países da Europa, Estados Unidos, Brasil e Austrália. Todo mundo quer o nosso market share, o que a gente tem. Cabe a nós, pelo menos, querer manter o que a gente tem. Falta esforço claro e objetivo do governo brasileiro em buscar a melhora do relacionamento com os países árabes. E isso é urgente. O decano dos países árabes solicitou reunião com o governo e isso ainda não foi respondido. Não pode. Embaixador da Palestina convidou o presidente (Jair) Bolsonaro para que ele visitasse o lado palestino e sequer foi respondido. São mensagens erradas. É preciso entender as mensagens. Havia 130 frigoríficos habilitados a vender para eles e (no ano passado) foi reduzido para 20. Tem de entender porque eles estão reduzindo. Se você tem um grande mercado, onde tem de ir primeiro? A gente nem acenou para eles. Acenamos para todo mundo, para todos que não se entendem com eles, e sequer mandamos uma mensagem para os países árabes. Precisamos fazer com que o governo brasileiro tenha uma posição mais assertiva com os países árabes e o mundo islâmico em geral.

Para o senhor, qual a maior falha do governo brasileiro na diplomacia?

Não consigo concordar com a linha das relações internacionais. Hoje temos uma ministra da Agricultura fantástica (Tereza Cristina), mas que não parece estar à vontade, ou não deram os poderes para que ela possa fazer o que deve ser feito. Ela conhece muito do negócio. É preciso saber o que está acontecendo. Minha leitura é que talvez não tenha o sinal verde. Ministério das Relações Exteriores tem atuado de forma inapropriada com os países árabes. E isso fecha as portas. Eu esperava atuação muito mais efetiva para estes mercados. Mas a todo momento vemos uma mensagem equivocada. O governo deve, imediatamente, provocar uma visita, se não for presidencial, que seja ministerial, aos países árabes. Se ele (Bolsonaro) foi para Israel, deveria ter visitado os demais. O presidente Lula fez isso, falou que o Brasil estava com todos eles, que não faz parte de guerra. O Brasil precisa mandar mensagem correta para os árabes, porque essas notícias estão rodando na mídia árabe toda hora.

Tem algum indício de diminuição de compras por parte dos países árabes?

Estamos falando de comoditties, segurança alimentar, e ninguém faz movimentos bruscos nessas áreas. O ciclo é demorado, às vezes de um ano. Então, vamos sentir isso conforme o tempo. A BRF paralisou o abate de frangos em um frigorífico em Carambeí (Paraná), uma planta dedicada aos países árabes, por cinco meses. Eles param esperando melhores condições do mercado. Não vão produzir para perder dinheiro. Eles falam em ajustes de estoque.

O senhor certifica os produtos halal, como é o trabalho?

Somos uma certificadora, habilitados pelos países árabes, islâmicos, para darmos um certificado de qualidade religiosa. Vamos aos frigoríficos e outras indústrias e podemos atestar que os produtos estão aptos a serem consumidos pelos países islâmicos. Então, esse é o documento mais importante. Não adianta mandar o produto sem o certificado, porque ele é devolvido.

Qual é a relação do senhor com o Grande ABC?

Meu avô esteve no Brasil em 1940 e trabalhou em São Paulo por dez anos. Depois ele retornou ao Líbano e passou a ter ligação com o Brasil. Meu pai, depois de ter estudado na Síria, teve de vir para o Brasil para trabalhar. Eles vieram para o bairro de São João Clímaco (na Capital), depois começaram a trabalhar com móveis, em São Bernardo. Nasci na cidade, estudei, casei, minha empresa é aqui e certifico plantas no Sul do Brasil. Somos de família moveleira e meu pai foi quem construiu a mesquita de São Bernardo, pois tínhamos no Brasil apenas uma mesquita, em São Paulo, e ele entendeu que toda sexta-feira o pessoal ter de sair para ir a São paulo era difícil, então ele fundou a mesquita. E isso fez com que muita gente se mudasse para São Bernardo. Muitos começaram a abrir lojas, e agora temos pelo menos 800 famílias.
 




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