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Live Aid: um dia que abalou o mundo
Por Ricardo Ditchun
Do Diário do Grande ABC
02/02/2005 | 13:17
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Jamais houve um show de rock como o Live Aid, o evento mais grandioso e politicamente correto da história do pop e que este ano completa seu 20º aniversário. Em 13 de julho de 1985, no Wembley Stadium, em Londres (Inglaterra), e no JFK Stadium, na Filadélfia (Estados Unidos), dezenas de nomes fundamentais da cena musical internacional, milhares de fãs que abarrotaram os estádios e cerca de 1,8 bilhão de telespectadores que acompanharam tudo ao vivo pretenderam mudar o mundo. Nada menos que isso.

Para conhecer ou rever essa história, dependendo da idade de cada um, o meio mais recomendável, hoje, é o pacote de DVDs que, tinindo de novo nas vitrinas das lojas, faz coçar os dedos de quem gosta de música. A caixa reúne em quatro discos todas as apresentações nas duas cidades (o cardápio principal), documentário, reportagens, depoimentos e participações especiais de B.B. King e INXS (os extras). David Bowie e Mick Jagger nos brindam com o vídeo Dancing in The Streets.

Live Aid (Warner Music Vision, importado) sai por R$ 230 (preço médio) e oferece dez horas de imagens e som. Um dos recursos possíveis é a escolha das legendas em português, inglês, francês, espanhol e japonês. No menu, o usuário pode comandar ainda a exibição ininterrupta das apresentações ou optar pela visualização das performances em cada um dos estádios.

Fome, fome, fome – Mas qual é o resumo dessa ópera? A motivação inicial se deu em outubro de 1984, quando a BBC de Londres transmitiu duas brilhantes e chocantes reportagens assinadas pelo jornalista inglês Michael Buerk sobre as dramáticas condições de vida de populações miseráveis africanas, sobretudo na Etiópia e no Sudão. Fome, fome, fome, clamam, diante da câmara, os olhos de crianças e adultos esqueléticos, prostrados, desnorteados e sem forças até para espantar as moscas que varejam em seus rostos. Esse material está no DVD 1 de Live Aid e nos faz lembrar o trágico mote dos concertos.

Bob Geldof, um punk, então líder da banda irlandesa Boomtown Rats, viu a reportagem de Buerk e se sensibilizou. “Vergonha, vergonha, vergonha”, respondeu, em Londres, em nome do chamado mundo civilizado. Planejou o Band Aid, a reunião de cerca de 40 popstars em torno do single Do They Know It’s Christmas?. Gravou essa canção e, ainda em 1984, espalhou o resultado, em disco e vídeo, pelo mundo. Arrecadou US$ 10 milhões, dinheiro que urgentemente se transformou em comida para os famintos.

No fim de 2004, em Londres, durante entrevista concedida para confirmar o lançamento de Live Aid em DVD, Geldof voltou à carga. Relembrou a filosofia da ação de 1985 que, além de políticas públicas responsáveis, cobrou o dever ético de sermos – todos – solidários: “É uma vergonha que a necessidade de continuação da campanha Live Aid ainda exista. Estranhamente, a maior parte dos líderes mundiais assistiu a este concerto no dia em que se realizou. Blair, Schroeder, Clinton e Bush assistiram aos concertos, porém cresceram e repetiram os erros das pessoas contra as quais protestávamos”.

Desnecessário dizer que a caixa de DVDs só saiu com o aval de Geldof, um dos curadores da The Band Aid Trust, espécie de ONG criada para gerir, sempre em favor dos africanos famintos, os recursos obtidos após os shows de 1985. O músico não queria liberar as gravações do show, mas o fato de existir muita gente ganhando dinheiro, por meio da pirataria, em nome do The Band Aid Trust, e sem que nada tenha sido repassado aos necessitados, o convenceu do contrário.

A soma que virá com a venda dos DVDs será imediatamente revertida para a causa. Alguns chefes de Estado já anunciaram que repassarão inclusive os valores recolhidos com os impostos que incidem sobre o produto em seus respectivos países.

Feed the world – E parte do sonho se fez realidade. A fome não acabou, mas muita gente deixou de sofrer e morrer. Após Band Aid vieram mais campanhas, organizadas por instituições de outros países. Caso de USA for Africa, com o hit We Are The World. No Brasil, o Rock in Rio, em sua terceira edição, de 2001, também programou uma estrutura beneficente. Além disso, a Rede Globo, por meio do projeto Criança Esperança, também realiza anualmente um dia de atrações artísticas com essa finalidade. São louváveis soluções locais para problemas idem diretamente influenciadas pela filosofia Live Aid. Resultado: mais dinheiro convertido em alimentos. Feed the world (alimentos para o mundo), como quer Geldof, o punk que, por suas atitudes exemplares, virou sir.

O ponto alto do empenho do músico irlandês, no entanto, foi no ano seguinte, 1985. Cada concerto do Live Aid durou cerca de 16 horas e por seus palcos desfilaram estrelas como Status Quo, Adam Ant, Elvis Costello, Sade, Sting, Phil Collins (fez questão de tocar nos dois shows, graças ao Concorde que então fazia a conexão Londres-Nova York), Bryan Ferry, Paul Young, Bono Vox (e o U2 em grande forma), The Beach Boys (chiquérrimos), Dire Straits, The Destroyers, Freddie Mercury (e o Queen inspiradíssimo), Simple Minds, David Bowie (nada menos que brilhante), Joan Baez, Pretenders, The Who (clássico, como sempre), Elton John, Madonna, Paul McCartney, Black Sabbath e Ozzy Osbourne, Crosby Stills & Nash, Judas Priest, Neil Young, Eric Clapton, Duran Duran, Patti Labelle, Mick Jagger e Tina Turner (é deste show a antológica cena em que Jagger arranca o vestido de Tina durante It’s Only Rock ‘n’ Roll), Keith Richards, Ron Wood e Bob Dylan.

Das bilheterias, direitos de transmissão pela TV, doações – efetuadas durante os shows e nos dias subseqüentes – e venda do álbum Live Aid vieram à tona US$ 60 milhões. Depois, de forma indireta em relação aos shows históricos, mas ainda por meio da veiculação da marca Live Aid (camisetas, pôsteres, fotos e outros produtos) e da venda de discos, a The Band Aid Trust reuniu e distribuiu outros US$ 145 milhões.

Aplacada a questão emergencial denunciada ao mundo via BBC pelo jornalista Michael Buerk – eliminar a fome que matava diariamente dezenas de refugiados nos campos etíopes e sudaneses, com doses absurdas de sofrimento físico e psicológico –, Geldof passou a se preocupar com questões mais profundas. Importava, então, fazer com que as milhares de famílias africanas expulsas de suas terras por causa da seca, que de qualquer modo voltaria a se manifestar, retornassem a seus lugares de origem em condições de produzir alimentos. Para tanto, foram distribuídos milhares de kits com itens para subsistência imediata (cobertores, canecas, colheres, leite em pó, pacotes de biscoitos supervitaminados – cada um garantia a vida de uma criança por um dia –, óleo e açúcar) e sementes para o cultivo de grão-de-bico.

A fim de conhecer melhor as necessidades dos desabrigados, Geldof foi aos campos africanos. Essa pesquisa resultou em uma lista de doações compatível com as demandas mais prementes e aquelas de caráter estrutural, capazes de proporcionar ações de subsistência continuadas.

De passagem, o músico descobriu que a principal cobrança feita pelas sociedades ditas desenvolvidas em relação aos governantes africanos, o controle de natalidade, não passava (talvez isso ainda ocorra) de uma típica crítica burguesa, em seu sentido marxista mais notório. Adultos pobres e miseráveis da Etiópia e do Sudão não têm filhos de forma indiscriminada por ignorância ou irresponsabilidade. Por falhas graves dos sistemas de saúde pública, as crianças têm baixíssima expectativa de vida. São concebidas, portanto, numa tentativa desesperada de prover núcleos familiares maiores e mais fortes do ponto da economia de subsistência.

Mais problemas – É preciso lembrar, ainda, que, fora as somas em dinheiro remetidas diretamente para a África, os bens arrecadados no Reino Unido e nos Estados Unidos (Holanda, Austrália, Alemanha, Áustria, Japão, Noruega, Iugoslávia e a ex-URSS enviaram importantes contribuições), como roupas, medicamentos, objetos e alimentos, exigiam uma notável capacidade de transporte. E de novo Geldof foi à luta.

Primeiro peitou a então primeira-ministra Margareth Tatcher. A menos de um metro da conservadora Dama de Ferro, quis saber se não seria possível que parte dos alimentos excedentes ingleses – como manteiga, por exemplo – fossem doados para as populações famintas da África. Miss Tatcher, visivelmente incomodada, citou vagas ações de ajuda em andamento, desconversou e abanou a mãozinha como a dizer: “Esquece isso, rapaz”. Depois, por meio de sua influência, e do exemplar trabalho voluntário de vários executivos e profissionais liberais (essa base se mantém até hoje), Geldof fez a The Band Aid Trust também se constituir como transportadora. Três navios foram generosamente emprestados para a causa e partiram lotados da Europa rumo à costa da Etiópia, no Oceano Índico.

Na carga, 169 caminhões de transporte em geral (doados pelos Estados Unidos graças a um apelo pessoal de Geldof e entregues com bandeiras da ONU), automóveis utilitários, caminhões-pipa, tratores, picapes, ambulâncias, arados, colheitadeiras e muito óleo diesel: 200 mil galões. Mais: 62 toneladas de plástico fino e grosso para embalar e ser usado como barracas, 41 barracas hospitalares, 10 toneladas de equipamentos hospitalares, 200 mil ferramentas agrícolas (enxadas, pás, picaretas, escavadeiras etc.), 15 contêineres com roupas e outras peças de tecido, 200 mil cobertores, 150 toneladas de sementes, US$ 250 mil em adubos, três complexos para irrigação artificial, 40 toneladas de equipamentos para bombear e extrair água, US$ 2 milhões em peças automotivas e pneus, uma ponte móvel, além de chuveiros e muletas.

A essa altura, em dezenas de países, a filosofia Live Aid se alastrou por meio de shows (alguns minúsculos), apresentações de mágicos, bailes, exposições, churrascos, desfiles de moda etc.

Incentivadas pelos pais e professores, crianças arrecadaram alimentos e roupas junto aos vizinhos e se comprometaram a doar boa parte de seus bens mais preciosos: brinquedos. E foi só um show de rock. Bob Geldof contaminou o mundo com o bem.



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