Setecidades Titulo Cotidiano
A vida e seus abacaxis
Rodolfo de Souza
27/12/2020 | 07:00
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Um dia minha mulher cismou de plantar a coroa do abacaxi que eu descascava. Pura bobagem – adverti –, não dará fruta em vaso tão pequeno. Claro que ela não deu lá muita importância para a minha teoria, rigorosamente fundamentada em ciência nenhuma, e a depositou com muito jeito no vaso que eu acabara de reprovar. Aliás, não pensei que o vegetal fosse vingar em qualquer terreno, mesmo em terra boa. Mas minha mulher, decidida como só ela, ainda dispensou à planta todo o carinho de que são dignos os seres puros deste planeta. Até aquele afago que daria a um gato, concedeu a ela, mesmo sentindo nas mãos a pele espinhosa nada parecida com o pelo macio do bichano lá de casa.

Certamente aflorava-lhe no pensamento a beleza da diversidade de espécies deste mundo. Não pude deixar de admirá-la, uma vez que também divido com ela essa sensibilidade para com as coisas da vida.

Fato é que o danado do vegetal, contrariando a minha expectativa, permaneceu vivo. Constatação que me chegou a partir da continuidade da coloração verde de suas folhas, resultado da fotossíntese, saborosa matéria apreendida lá nos primórdios do ensino fundamental, em que eu buscava o conhecimento, não porque o notasse importante, mas porque lhe dedicasse grande apreço, sem saber exatamente a razão. Reconhecia somente seu aspecto instigante que tinha por hábito me apresentar coisas que me despertavam curiosidade e fascínio. E eu, leitor contumaz, buscava, por meio da palavra impressa, a descoberta. Chego, inclusive, a sentir alguma tristeza pelo ser humano que nunca experimentou tamanho deleite, simplesmente por optar pela preguiça que o distancia dos livros.

Mas o tempo implacável não cessou de correr, e a coroa do abacaxi, determinada que só vendo, não tomou conhecimento dos muitos meses transcorridos e permaneceu verde. Meio amarelada, na verdade, embora sinalizando que respiração e pulsação iam bem, sim senhor. E eu regava a planta, tal qual fazia com as demais. Até porque ela estava viva e merecia todo o meu respeito. Diga-se de passagem, costumo respeitar seres que não merecem um fiapo de consideração. Por que, então, não haveria de dedicar amor a um ser que não carrega no cerne o espírito de porco, exclusividade do ser humano?

E o pequeno vaso que sustenta a vida da coroa persistente foi ainda deslocado daqui para ali e dali para aqui, um sem número de vezes. Por fim, ocupou determinado espaço com a finalidade de ajudar a conter os ímpetos da gata inquieta.

A coroa amarelada, esquecida lá num canto, testemunhou também o definhar lento das flores, suas companheiras que, apesar dos cuidados, secaram. No entanto, ela resistiu só para me desafiar e mangar de mim, eu que duvidei de sua força.

São tempos difíceis estes, em que também o ser humano busca sobreviver em meio a sobressaltos que incluem até uma peste, num mundo em que o medo fez morada nos corações e a intolerância dá as cartas. E tudo isso faz do futuro algo sombrio, difícil de imaginar.

Talvez, por isso, tenhamos endurecido. Sobretudo, os amantes das coisas simples, como as coroas de abacaxi.

Mas a vida tem lá os seus caprichos, e permitiu que num dia qualquer de desalentos cotidianos, minha mulher se surpreendesse com o insólito: a velha e amarelada coroa de abacaxi causou-lhe espanto ao lhe apresentar, logo de manhã, um impetuoso abacaxi que despontou hirto, se impondo como fruto de uma planta desacreditada e esquecida.

Foi, pois, a sua determinação que me levou a deitar a pena neste branco papel digital, inspirado, mais uma vez, pelo jeito sutil com que a vida manifesta a sua vontade e nos envia recado de que nem tudo está perdido, mas que é preciso ficar de olhos bem abertos.  

Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. 

É professor e autor do blog cafeecronicas.com




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