Política Titulo 60 anos em 60 entrevistas
‘A mídia é essencial. Sem, o artista não é nada’
Por Marcela Munhoz
Do Diário do Grande ABC
04/04/2018 | 07:00
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Clementino Raimundo nasceu em 8 de junho de 1936, na Vila Pires, em Santo André. E parece que saiu cantando da barriga da mãe, porque desde que se entende por gente tem na música um alimento de vida. Ele é conhecido por entoar sambas, choros e gafieiras há mais de 60 anos na região.

Embora tenha começado a se apresentar como Mimi Boêmio anos depois, confessa que carrega a boemia como amiga desde sempre. Por sua vez, o Mimi remete à infância. “Era o gato que minha avó tinha. Ela me confundia com ele”, diverte-se o senhor com pinta de sambista. “Mas daqueles sambas antigos, cheios de poesia”, faz questão de dizer.

Dizem que sua paixão pela música é coisa antiga, surgiu na infância, dentro da escola. Confere, seu Clementino?
Isso. Nasci em Santo André, mas logo me mudei com a família para o bairro Rudge Ramos, em São Bernardo, onde cresci e me descobri como músico. Lembro que cantei pela primeira vez ainda como aluno da saudosa escola Professor Otílio de Oliveira. Quando tinha 10 anos me destacava no orfeon, como era chamado o coro, o coral de hoje em dia. Os professores ficavam impressionados e encantados com o meu timbre. E quem pensa que minha primeira apresentação em público foi em teatro, está enganado. O mundo conheceu minha voz foi no serviço de alto-falante de um vereador da cidade, o Juca Pato. Comigo também cantavam os sertanejos Tonico e Lair e Rui e Ramos.

É verdade que seu pai tocava sertanejo, mas o senhor optou pelos grandes sambas?
Minha mãe, Isabel, era dona de casa, e meu pai, Benedito, tomava conta de olarias e tocava viola, foi para o lado do sertanejo. Engraçado que nunca me interessei por esse ritmo, mas, por causa dele, nomes como Tonico (1917-1994) e Tinoco (1920-2012), Tião Carreiro (1934-1993) chegaram a nos visitar. Não sei explicar, mas desde o começo me identifiquei muito com o samba. Me apresentei por muitos anos sozinho. Foi entre as décadas de 1960 e 1970 que fiz parte do Quarteto do Batanha, no qual fiquei por uns dez anos. A gente chegou até a tocar no Uruguai. Participamos da inauguração do canal 2 de Bauru, em uma época em que só se tocava iê-iê-iê.

E no samba, quais ídolos não podem faltar na lista de inspiração de vida para o senhor?
Orlando Silva (1915- 1978) foi meu primeiro grande ídolo, Nelson Gonçalves (1919-1998) também. Mas, na minha opinião, os melhores cantores de todos os tempos ainda são Emílio Santiago (1946- 2013) e o grande Simonal (1938-2000). Também admiro demais Agostinho dos Santos (1932-1973), de Manhã de Carnaval, que fez parte da trilha sonora do filme Orfeu Negro ou Orfeu do Carnaval. É com orgulho que conto que foi junto dele que recebi minha primeira carteira profissional de músico. Hoje, a filha dele, que mora em São Bernardo, mantém um bar-acervo (o Bar Ferradura Acervo Cultural Agostinho dos Santos fica no Centro da cidade). O inesquecível Adoniran Barbosa (1910-1982), claro, é outro que não poderia deixar de citar. Cheguei a assistir a um show dele na Oliveira Lima, no Centro, com meu pai. Ele morou em Santo André e era caricato para caramba, um homem impressionante. Esse dia também está marcado na minha memória. E antes de finalizar a lista, não dá para esquecer das cantoras Alcione, Elis Regina (1945- 1982) e também Maysa (1936- 1977).

Conte-nos um pouco sobre a sua história e relação com o rádio e seus programas de calouros com plateias.
Minha família sempre ouviu música dentro de casa e o rádio era o único aparelho que tínhamos disponível. A gente gostava muito. Os nossos preferidos eram os de auditório e com competições, como a Peneira Rodini. Queria tanto tocar em rádio que consegui. Ganhei o primeiro lugar em competição no Calouros Glória, de rádio de Santo André.

E sua participação no programa de televisão Almoço com As Estrelas?
Apresentado por Lolita e Airton Rodrigues, era o mais famoso de música daquele tempo – a produção ficou 24 anos em cartaz, de 1956 a 1983. Fiquei muito emocionado, porque estavam participando daquele dia grandes ídolos meus, como Angela Maria, Maysa, Carmélia Alves, a ‘Rainha do Baião’ (1923-2012), e Cauby Peixoto (1931- 2016). Modéstia à parte, fomos muito aplaudidos. Realmente é algo inesquecível na vida de qualquer um, concorda?

Qual realmente foi o momento mais emocionante da sua carreira?
Aconteceu no fim da década de 1960, quando cantava em uma cantina no Ipiranga, São Paulo. O dono do local era presidente do Clube Aranami, em São Bernardo, e me chamou para substituir uma banda que não agradou o público. Subimos ao palco e todo mundo começou a dançar, a pedir ‘mais um, mais um’. O presidente pediu para continuarmos o baile e disse que ia dispensar a orquestra, mas não deixei ele fazer isso, não. Resolvi propor que fizéssemos um show juntos e foi um sucesso. A música é universal. Quando acabou, a maestrina veio agradecer. Foi muito emocionante. Também gostei de ter sido homenageado na Galeria das Artes, no Instituto Acqua, em Santo André. São poucas as pessoas que dão esse tipo de valor para a gente.

Sei que é difícil escolher apenas algumas, já que seu repertório conta com mais de 4.000 músicas, mas quais mais o emocionam?
Tem várias. A Noite do Meu Bem (Dolores Duran), Eu Sei que Vou Te Amar (Tom Jobim) e Carinhoso (Pixinguinha) são clássicas, mas eu destaco Naquela Mesa (Nelson Gonçalves). Um filho escreveu para o pai que morreu. Lembro muito do meu pai quando a canto. Ele foi um grande parceiro meu, sempre. Nunca foi fácil apoiar um filho que escolhe a arte e, naquela época, era mais complicado ainda. Nós éramos muito pobres, não tínhamos nada, nossa vida era bem difícil, mas meus pais me apoiaram sempre. Meu pai me tratava até de senhor, éramos muito amigos. Foi muito sofrido quando ele morreu.

Dá para perceber que Mimi é uma pessoa muito ligada à família. Estou certa?
Com certeza. Não dá para negar que o futebol e a música dividem espaço no meu coração com a minha família, outra grande paixão. Só tenho a agradecer por ter minha mulher, Irene, meu filho, Marco Aurélio, e meus netos Luis Felipe, Eduarda e Livia.

O que o senhor acha da produção musical dos dias de hoje? Algo o agrada?
Para mim, sobrou pouca coisa hoje. Só ouço um pouco dos conjuntos de samba,além de Zeca Pagodinho, Diogo Nogueira e Jorge Aragão. Porque os outros eu não curto, não. Gosto mesmo de música boa, se assim pode-se dizer. As que têm letras que não dizem nada, para mim, não valem, não consigo nem ouvir. E tem muita música hoje em dia que não diz absolutamente nada. É muita pornografia e acho que as canções não merecem isso. Música combina com sentimentos puros, que vêm da alma. Quando eu canto, realmente sinto. Tem cara que abre a boca e diz que está cantando, mas não está. Nosso País anda complicado, é só ver a política. Até fui chamado para entrar na área uma certa época da minha vida, mas nunca quis associar minha música e nem combina com minha personalidade. Gosto de ser muito certinho, costumo a até pagar os artistas que trabalham antes do show.

Após nos contar trechos da sua carreira artística, o senhor sabe definir o que a música significa na sua vida?
Significa vida, alegria. Me proporcionou coisas incríveis na minha trajetória, conheci pessoas inesquecíveis. Até hoje tenho um público fantástico, caravanas de outras cidades que fazem questão de me ver (Mimi se apresenta quatro dias por semana, incluindo o Boteco Adoniran e o Catedral Hall, em São Bernardo, além de festas particulares). Vão até crianças que querem assistir à minha apresentação. É muito gratificante. Antes tocava bateria, agora só canto com o grupo Mimi Boêmio e Regional. E, diferentemente dos outros artistas, só não tomo líquido gelado no dia, de resto, não tenho nenhuma preparação especial. Acredito que, por causa da maturidade, minha voz está bem melhor hoje. A verdade é que fui aprendendo a cantar com o tempo, aprendi a respirar, a medir o tom. Nunca estudei música, aprendi sozinho.

Além da carreira artística, onde mais trabalhou?
Já trabalhei também fazendo vidros, mexia com murano. Me aposentei nisso. Também era tipo de arte, adorava. A primeira coisa é sempre fazer o que a gente gosta, não é? Também fui jogador profissional de futebol, um grande centroavante. Joguei no Monte Alegre, em São Caetano, campeão da Terceira Divisão. Quando estava vestindo a camisa do Meninos Futebol Clube, do Rudge Ramos, e estava prestes a fechar contrato com o Guarani, de Campinas, me lesionei feio, tinha 19 anos. Não esqueço até hoje: era uma partida contra o São Paulo. Estourei o tornozelo e não deu mais para jogar. Mas sempre amei futebol (Mimi é corintiano roxo, como seu pai era). Acredito que na Copa do Mundo da Rússia, a Seleção Brasileira será campeã. Temos um grande técnico, o Tite, sem contar com o Neymar, claro.

O que o senhor pode contar sobre o Diário, um jornal que, em muitos momentos, contou um pouquinho sobre a sua trajetória profissional?
Para mim, sempre foi e continua sendo o melhor meio de comunicação da região. Já fui assinante por muitos anos e agora compro quase todos os dias. Lembro que saí a primeira vez na publicação quando seu Ademir Medici lançou o livro Programa de Auditório, no Teatro Carlos Gomes. Ele me viu lá e resolveu contar minha história. A mídia é essencial, não é? Sem vocês o artista não é nada. E nesses 60 anos do Diário quero parabenizar. Acredito que o jornal está fazendo certo, incorporando as inovações tecnológicas. Mas, mesmo assim, eu adoro a publicação impressa. Sou daqueles que sentem prazer ao abrir as páginas do jornal. Acredito que nunca vai acabar.

Como gostaria de ser descrito nas páginas do Diário? Quem é Mimi Boêmio?
Gostaria de ser lembrado como o cantor simples, que sempre gostou de música, das boas, que faz questão de tratar todo mundo igual. Sempre quis levar alegria às pessoas e acho que consegui. Me considero feliz.Gostaria que Deus me desse mais alguns anos de vida para que eu continuasse na missão. Sinto que o samba sempre teve e terá lugar no coração do brasileiro, afinal, o samba faz bem. Se você gosta do samba, vem sambar também.

Mimi Boêmio e o Diário

Quando chegou para a entrevista, o sambista andreense fez questão de abrir uma pasta que carregou com todo o cuidado. Dentro, estavam recortes de entrevistas que deu e passagens da sua carreira registradas pelo Diário.

“Sou leitor desde sempre e fico muito lisonjeado todas as vezes em que sou a notícia”, conta o artista, que acredita que o jornal está no caminho certo, no sentido de incorporar as novas tecnologias ao mesmo tempo EM que mantém o impresso. “Sou daqueles que sentem prazer ao abrir as páginas do jornal. Acredito que nunca vai acabar.” 




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