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Alho: amado ou odiado, ele não admite meio-termo
Por Silvio Lancellotti
15/04/2007 | 07:02
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A seu favor, uma lista bem alentada de partidários famosos: Hipócrates (460 a.C.-370 a.C.), o pai da medicina; o poeta Virgílio (70 a.C.-19 a.C.); o naturalista Plínio (23-79); o fisiologista Dioscórides (40-90); o profeta Maomé (570-632); o monarca Carlos Magno (742-814); o fabulista La Fontaine (1621-1695); o cientista Pasteur (1822-1895); o pacifista Gandhi (1869-1948); a primeira-dama Eleanor Roosevelt (1884-1962) – e a maioria das raças de cachorros, como bem sabem os fabricantes das rações para tais animais.

Indignadamente contra, um rol além de razoável de outras celebridades: o teatrólogo Plauto (254 a.C.-184 a.C.); o versejador Horácio (65 a.C.-8 a.C.); o bardo William Shakespeare (1564-1616); o paisagista John Evelyn (1620-1706); o rei Luís XV (1710-1774); o satirista Tobias Smollett (1721-1771) – e os vampiros, claro, como jura a biografia do conde Drácula (1431-1476).

Trata-se do alho (Allium sativum), integrante de uma importante família vegetal que também inclui a cebola, a cebolinha e o poró. Originário da Ásia Central, provavelmente da região que engloba o Cazaquistão, o Uzbequistão e a China, o alho entrou na história pela porta da medicina, já no Egito antigo, cerca de 6 mil anos atrás, quando se tornou um componente obrigatório de inúmeros remédios populares. Os doutores dos faraós então valorizavam as suas propriedades antimicrobianas e os seus efeitos benéficos na solução dos males do coração e da circulação do sangue. Igualmente constataram que a sua ingestão prevenia os resfriados e auxiliava no debelamento das infecções.

O seu cultivo depressa se espalhou ao redor do Mediterrâneo. Apesar das polêmicas. Ame-o ou deixe-o, o alho não admitia meio-termo – conforme, aliás, ainda ocorre.

De todo modo, até a Idade Média, em estado bruto, cru, fez parte, compulsoriamente, dos farnéis dos soldados em guerra. Acreditava-se que funcionava como um perfeito paliativo para o cansaço provocado pelas longas marchas debaixo do sol. Daí, logo virou um componente habitual de receitas: da gastronomia dos árabes, os pioneiros a defenderem o seu uso na cozinha, se transformou num condimento fundamental na Grécia, na Itália, na França, na Espanha e em Portugal.

Quando os navegadores ibéricos aportaram nas Américas, por volta de 1500, descobriram que os nativos astecas e maias, inclusive incas e tupiniquins, conheciam um tipo selvagem do produto.

Os exemplares que se colhem, atualmente, derivam do casamento do selvagem com o disseminado pela Europa. Das matrizes essenciais brotaram oito variedades e seiscentas subvariedades – todas bastante assemelhadas na sua textura e no gosto. Diferem, eventualmente, no desenho e no formato do seu bulbo, ou na tonalidade das películas que embrulham os seus dentes.

Hoje, existe bom alho em praticamente todo o Brasil, com a exceção da Amazônia (o alho não tolera a umidade e prefere as temperaturas mais frias). Nesta página, proponho duas alquimias nada convencionais. Uma, proveniente das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, entrada deliciosa, de nome Pa Amb Oli. Outra, de minha lavra, vigorosérrima, que batizei de filé do inferno – diz a lenda bíblica que, ao abandonar o Paraíso, expulso, o demônio deixou como rastro uma pegada de alho. Também explico, ao lado, a razão do seu sabor e do seu aroma característicos, além de sugerir um econômico tempero caseiro.

RECEITAS

PA AMB OLI

Ingredientes, para uma pessoa: 2 fatias de pão do tipo filão robusto cortadas na diagonal, um dedo de espessura e pré-tostadas em forno bastante suave, até se endurecerem. 2 dentes de alho. 1 tomate, sem sementes, picado à ponta de faca. Azeite de olivas. Sal. Fatiazinhas de copa ou de sopressata.

Modo de fazer: Delicadamente, esfrego o miolo de cada uma das fatias de pão com um dos dentes de alho. Tempero o tomate picado com o azeite e com o sal necessários. Cubro cada uma das fatias de pão com a sua parte de tomate. Sirvo, elegantemente, com as fatiazinhas de copa ou de sopressata.

FILÉ AO INFERNO

Ingredientes, para uma pessoa: 1 medalhão de filé mignon, cerca de 250 g de peso. Sal. Pimenta-do-reino. Azeite de olivas. 1 colher de mesa bem cheia de alho picadinho. 1 colher de chá de pimenta vermelha, dedo-de-moça ou malagueta, sem sementes e bem batidinha. 1 colher de chá cheia de salsinha verde bem batidinha. Agrião. Vinagre. Batatas coradas ao forno.

Modo de fazer: Massageio o filé com o sal e com a pimenta-do-reino. Douro, numa grelha ou numa frigideira de fundo ranhurado para marcar bem a carne, dois minutos de cada lado. Paralelamente, em outra frigideira sobre um pouco de azeite, refogo o alho até que ameace se dourar. Imediatamente, apago o fogo, agrego a pimenta vermelha, a salsinha verde e misturo. Cubro o filé com esse molho bem pedaçudinho. Sirvo ao lado de uma saladinha de agrião, apenas condimentada por sal, azeite e bom vinagre, e de batatas, das redondinhas, obviamente sem as cascas e meigamente coradas ao forno.

SAIBA MAIS

COMO DOMESTICAR O ALHO

Quando se corta, se lamina, se esmaga ou se tritura um dente de alho, o procedimento provoca o rompimento de membranas celulares, e daí se livram dos seus alvéolos respectivos uma substância bioquímica e uma enzima antagônicas, a aliina e a alinase. Basta colocá-las em contato que a alinase ataca a aliina, a ponto de rapidamente trucidá-la. O gosto e o cheiro desagradáveis que o alho impõe no hálito provêm exatamente da decomposição da aliina. Ou, da sua imediata digestão pela alinase. Sim, isso mesmo, do apodrecimento da pobre aliina. Para evitar o resultado incômodo, depois de se lacerar o alho basta cobri-lo com sal, um abrasivo, que controlará a tal digestão e então lavar o conjunto, em água fresca. O alho se amansará.

ENGENHOSO TEMPERO CASEIRO

Cebola fatiada faz chorar. Pela mesma razão que o alho picado amarga. No caso da cebola, a quebra do tecido faz com que a sua alinase tente comer a sua aliina, batalha que libera um ácido agressivo ao olfato e ao olhar. Por isso não se devem combinar alho e cebola em uma mesma receita. A alinase do alho ataca a sua aliina e, depois, bem mais voraz, logo investe contra a cebola – e a mistura de alho e cebola resulta em cebola com gosto de alho. De todo modo, como o alho é mais caro, combine-o à cebola, num liqüidificador, na proporção de 10% para 90%, mais azeite e um toque de sal. Mas, cuidado, pois a digestão não cessa. Gases se expandirão no recipiente de guarda. Abra o seu vidro, de vez em quando, para que a mistura não se transforme em bomba.




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