Cultura & Lazer Titulo Literatura
'Lobato é atual'

Passados 70 anos da morte do escritor, obra entra em domínio público e conversa com a situação do País

Miriam Gimenes
01/01/2019 | 07:18
Compartilhar notícia


Durante os seus 66 anos de vida o escritor Monteiro Lobato (1882-1948) teve apenas quatro filhos de sangue, todos com Purezinha, seu amor para vida toda. O mesmo não aconteceu, no entanto, na sua obra. Pai de mais de uma dezenas de personagens – entre eles Narizinho, Emília, Pedrinho, Tia Nastácia, a Cuca, Jeca Tatu, etc –, ele ‘povoou’ a história da literatura brasileira com rebentos que ficaram imortalizados.

E, a partir de hoje, essas figuras e as histórias que elas ajudam a contar entram em domínio público – isso porque já se passaram sete décadas da morte do escritor. Os textos dele, portanto, poderão ser editados por qualquer pessoa e os personagens ganham liberdade para estar inseridos em desenhos, peças, obras, musicais sem a necessidade de obter autorização nem pagar direitos autorais aos herdeiros.

“Isso vai incentivar as pessoas a difundirem mais a obra dele, que é extremamente versátil. Não há um assunto sobre o qual nunca tenha falado, sempre original, nacionalista no bom sentido, e por outro lado ele tem essa questão de suscitar a reflexão, de fazer você pensar. Ele é indispensável”, diz a curadora de sua obra, a também escritora Marcia Camargos. Não à toa, e em todas as quatro edições da pesquisa do Instituto Pró-Livro que desde 2001 mapeia a relação dos brasileiros com os livros, a Retratos da Leitura, Lobato foi o escritor mais lembrado dos entrevistados.

Marcia escreveu as apresentações e quarta capa de todo os livros, tanto infantis quanto para adultos, das Obras Completas do autor, lançadas pela Editora Globo, que entre 2008 e 2017 vendeu 4,2 milhões de exemplares. Também foi coautora do livro Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia (Editora Senac), que obteve os prêmios Jabuti e Livro do Ano de 1998. “O que seria uma pequena fotobiografia acabou tomando uma proporção enorme e, na época, foi muito gratificante porque ele estava meio esquecido e a gente recolocou Lobato de novo na pauta do dia”, lembra a escritora, acrescentando que a obra deve ser reeditada este ano.

Para escrevê-la em parceria com Carmem Lucia de Azevedo e Vladimir Sacchetta, Marcia leu todas as suas obras, que a surpreenderam muito, sobretudo a adulta. “Porque a gente conhece o Lobato pela faceta infantojuvenil e a obra adulta dele é fantástica. Inclusive em 2018 se comemoraram os 100 anos do Urupês e a gente vê a atualidade daquilo.” No texto, considerado sua obra-prima e onde ‘nasceu’ a figura do Jeca Tatu, Lobato denuncia problemas que a população enfrentava como a falta preocupação dos políticos com a saúde e educação, por exemplo. “Ele dizia que os governantes só se lembravam desse povo humilde e pobre na época das eleições, ou seja, o mesmo que ocorre hoje”, acrescenta. Tempos depois de publicá-la, Marcia diz que Lobato ‘desculpou-se’ com o Jeca, a quem havia chamado de ‘sacerdote da lei do menor esforço’. Conseguiu enxergar que a sua personalidade se formara como resultado de todo sistema em que vivia.

Por isso, acrescenta a curadora, é imprescindível que se difunda e deguste a obra do autor. “Nestes tempos sombrios que nos aguardam a gente tem de sair de arma na mão e essa arma é o livro. Lobato é uma arma calibre 38. As pessoas têm de ver que Brasil é este. Que vergonha que a gente ainda continue com os mesmos problemas do início do século 20. Ainda enfrentando este abismo social, responsável pela violência enorme que a gente vive. Isso mostra, infelizmente, como Lobato é atualíssimo.” 

Escritor tinha memória enciclopédica

A escritora Marcia Camargos não se limitou à biografia de Lobato. Ela também escreveu Juca e Joyce: Memórias da Neta de Monteiro Lobato (Moderna), resultado de conversas que manteve durante seis meses com Joyce, hoje com 88 anos.

E foi por conta deste contato mais próximo com a família dele que conseguiu traçar o perfil humano do gênio, como ela mesma diz. “Ele era uma pessoa dedicada à família, estava sempre presente, sustentava a família toda. Mas tinha aquela coisa de que quando estava escrevendo não podia ser incomodado. O seu espaço tinha de ser preservado.” Nem a neta tinha licença para incomodá-lo nestas ocasiões.

Do mais, era um homem comum, um típico brasileiro, adorava a comida nacional – ‘gostava de sustância’ – e era um homem hiperativo. “A neta dizia que ele não conseguia se sentar na mesa para comer. ficava rodando em volta. Ia lá, pegava uma coisinha, comia, era uma pessoa muito inquieta.” Tinha o costume de acordar cedo, ficava de pijama a maior parte do tempo e guardava rapadura no bolso para comer ao longo do dia.

E o mais engraçado: nunca conseguiu montar uma biblioteca, porque se mudava muito. “Os livros ficavam todos encaixotados. Se Joyce queria ler, tinha de ir para garagem e procurar os livros nas caixas”, diz Marcia.

Um de seus hábitos mais peculiares era manter dois pedestais na sala. Em um ficava o dicionário Caldas Aulete e, no outro, a enciclopédia Britânica. “Lia os dois todo dia em voz alta. O dicionário para entender o sentido exato das palavras e a enciclopédia fornecia a riqueza de detalhes que vemos na obra dele, que fala de mitologia, de Leonardo da Vinci, entre outras coisas. É realmente uma cultura enciclopédica, tinha uma memória muito boa, não existia Google. Era religioso nisso.”

Obra aguça curiosidade das crianças

Monteiro Lobato costumava dizer que achava a ‘criatura humana muito mais interessante no período infantil do que depois de idiotamente tornar-se adulta’. Talvez por isso ele acreditava que era ainda na primeira infância que deviam-se formar cidadãos, munidos de informações, que no seu caso vinham dos livros.

Marcia Camargos partilha da mesma opinião. Tanto que já escreveu o livro da A Turma do Sítio na Semana de 1922 (Editora Globo) – e pretende fazer uma peça contando a relação entre o autor e os modernistas – e está com projeto de transformar o Urupês para a linguagem infantil. “Vamos armar desde criança com essa coisa que Lobato colocava, que desde cedo tem de alimentá-las e desenvolver o espírito crítico e a curiosidade. Depois, elas próprias vão fazer seus caminhos e não poderão mais ser manipuladas por fake news, por mentiras difundidas por WhatsApp. Serão adultos críticos.”

Por isso, acrescenta, o autor tratava em suas obras infantojuvenis de diversos assuntos, até mesmo aqueles que, acreditava-se, devem ser discutido apenas por adultos. “Se a gente infantiliza as crianças vai criar uma pessoa sem espinha dorsal, ele tem de saber se indignar. Tem de aprender com o passado para que não o erro não se repita não futuro. Não se deve criar numa bolha”, acredita.

A autora mesmo já escreveu publicações sobre a guerra na Síria para os pequenos e um outro livro, Um Menino Chamado Vlado, que fala sobre a Ditadura Militar (1964-1985) tomando como fio condutor a história do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975 nos porões do DOI-Codi.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;