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Pixote, 25 anos depois
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
28/03/2006 | 08:25
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F.R.S. ou Pixote. Era por tais nomes que costumava ser chamado da porta de casa para fora. O primeiro, acrônimo característico para omitir a identidade de adolescentes, era como o noticiário o tratava. O segundo, herança do personagem que o inscreveu na história do cinema, era o pronome que desconhecidos e desavisados lhe atribuíam. Um problema de identidade que embaralhou parte da juventude do garoto descoberto em Diadema para sintetizar, em uma produção cinematográfica, a crise social do Brasil no limiar dos anos 80. O filme, Pixote – A Lei do Mais Fraco; o menino, Fernando Ramos da Silva. E são ambos motivos de escrutínio no documentário Pixote In Memoriam, da dupla Felipe Briso e Gilberto Topczewski, exibido em sessão única no É Tudo Verdade, quarta, em São Paulo.

A dada hora do documentário, um Fernando quase adulto pede que não o liguem mais ao personagem do filme de Hector Babenco, que ele não suporta mais esse “dilema do Pixote”. É um dos traços mais tocantes de uma obra cujo conteúdo situa-se entre os trabalhos iniciais da produção de Babenco, em 1980, e um tira-teima das expiações após a morte de Fernando Ramos da Silva, em 25 de agosto de 1987, aos 19 anos.

“Uma questão precisa ficar mais clara que todas as outras: confundiu-se muito a história do Fernando com o problema dos meninos de rua. Não são a mesma coisa, mas duas facetas de um mesmo problema chamado Brasil”, diz o co-diretor Felipe Briso. “O Fernando nunca tinha ido à Febem, tinha família e casa, nunca foi menino de rua”.

A princípio, Pixote In Memoriam foi pensado como material extra do DVD de Pixote – A Lei do Mais Fraco. “A gente foi ficando fascinado com os desdobramentos do material. A transformação (em um documentário independente de 80 minutos) aconteceu meio naturalmente”, afirma Briso.

Zebra – A primeira pergunta que Dona Josefa, a mãe de Fernando, fez ao filho quando ele anunciou que participaria da produção de Hector Babenco, foi: “Vai sair daí alguma coisa que preste?”. Essa dúvida, o documentário Pixote In Memoriam não tem. Resgata em depoimentos e imagens de arquivo os processos da pré-produção, os ensaios, a escolha dos garotos para interpretar meninos de rua e internos da Febem. Mas é inevitável que os rumos do filme tendam para a vida de Fernando.

Babenco relata o telefonema a cobrar que Fernando fez para sua casa, na qual revelou que o dinheiro dado pela produção para que comparecesse aos ensaios tinha sido roubado pelo irmão. Apesar de todos os pesares – falta de experiência dramática e timidez, por exemplo –, era Fernando o Pixote que Babenco queria, pela sua “tristeza congênita”, pela “alma ferida”, pelo “riso incompleto”. A preparadora de elenco Fátima Toledo narra que durante um dos exercícios de interpretação, uma ida ao zoológico para escolher um animal com quem se identificasse, Fernando optou pela zebra, essencialmente vítima no reino animal.

O documentário prossegue com outras minúcias de bastidores, com a surpreendente repercussão internacional de Pixote (mais os depoimentos do músico Nick Cave e dos cineastas Spike Lee e Julian Schnabel) e, enfim, com o jogo de expiações e contextos pela morte de Fernando. A mãe alega que, por via das dúvidas, todos os crimes em Diadema pareciam ter sido cometidos por Fernando desde que este fora detido pelo roubo a uma residência. Isenta filme e família de qualquer responsabilidade: “O defeito foi dele mesmo”.

Foi executado sob a cama de sua casa, com oito tiros à queima-roupa. O jornalista Caco Barcellos, que cobriu a morte à época, não acredita que os policiais que o assassinaram conhecessem sua identidade: “Estavam atrás de um garoto qualquer, sem poder nenhum, no meio de uma favela”. Os diretores fecham o filme com tomadas atuais de meninos de rua, com a bandeira brasileira ao fundo. Apontam o pífio progresso social do país, numa associação com o fim de Pixote, quando o protagonista anda sobre trilhos ferroviários a caminho de lugar nenhum, de uma história sem fim.

Um desfecho que o próprio Fernando Ramos da Silva preferia ignorar, segundo Cida Venâncio, a viúva: “Ele nunca viu o filme inteiro. Morreu sem ver o filme até o final”.

PIXOTE IN MEMORIAM – Exibição no É Tudo Verdade – 11º Festival Internacional de Documentários: Quarta, às 21h, no Cinesesc – r. Augusta, 2.075, São Paulo. Tel.: 3082-0213. Entrada franca. Informações: www.etudoverdade.com.br

Alguns depoentes do documentário

O diretor Hector Babenco alega que depois do filme e das frustradas tentativas de empregar Fernando Ramos da Silva como ator, arrumou outras formas de dar-lhe mais oportunidades. Chegou a arrumar-lhe trabalho e pagar seu salário às escondidas, para que ele não soubesse que o ajudava nos bastidores. Soube da morte de Fernando quando montava Ironweed, produzido nos Estados Unidos.
“É algo difícil de tirar de dentro de mim”.

No momento da seleção do protagonista, Babenco priorizava Fernando enquanto a treinadora de elenco Fátima Toledo preferia um outro garoto, com traquejo dramático e que daria a ela mais segurança nos ensaios e na interpretação em si. O diretor insistiu em seu escolhido, apesar da timidez aparentemente inexorável. Fátima, por fim, concordou e diz ter aprendido uma lição: “Eu precisava pensar no filme, e não em mim”.

“Sempre tentava capturar a vida como Hector o fez”, afirma o diretor Spike Lee, autor de filmes como Faça a Coisa Certa e Malcolm X, sobre a obra de Babenco, à qual assistiu à época da faculdade. O cineasta norte-americano – que assina um dos episódios de Crianças Invisíveis, que estréia nesta sexta-feira e de temática similar à de Pixote, comenta ainda que ficou “superimpactado” com o “realismo do filme”.

Marília Pêra esclarece intimidades do set, como o relacionamento festivo, cúmplice dos atores. Duas das cenas mais marcantes de Pixote resultam do improviso: o beijo na boca entre Pixote e a prostituta Sueli (Marília) na sorveteria e a “releitura” da Pietá, com a amamentação tardia do garoto. “Acho que nem o Hector sabia disso (que algumas cenas eram combinadas à revelia do roteiro por Fernando e Marília)”, diz a atriz.




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