Setecidades Titulo Especial
Agentes e presos de CDPs relatam abusos e maus-tratos

População carcerária da região conta com 5.184 presos, pelo menos 2.567 a mais do que deveria

Bia Moço
do Diário do Grande ABC
07/12/2020 | 00:01
Compartilhar notícia
Banco de Dados/DGABC


Violência, sujeira, doenças, poucos funcionários e excesso de detentos. Esse é o resumo do cenário insalubre que existe por trás das muralhas que escondem a verdadeira realidade do sistema carcerário do País, conforme avaliações do próprio CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que aponta população carcerária com cerca de 880 mil pessoas no Brasil. A realidade não é diferente nas quatro unidades de CDP (Centro de Detenção Provisória) do Grande ABC, que abrigam 5.184 presos em espaços onde deveriam estar 2.617.

Não à toa, funcionários, familiares e detentos de Santo André, São Bernardo, Diadema e Mauá denunciam a falta de soluções para situações de calamidade, que fogem aos olhos da sociedade, e do descaso para com esses locais e ocupantes. E cobram intervenções do poder público.

Entre os diversos problemas apontados, denunciam perseguição, assédios moral e sexual. A população carcerária também afirma que, diferentemente do que diz a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária), não houve medidas sanitárias e cuidados especiais diante da Covid, tanto com relação aos detentos quanto para com funcionários. Escassez de água e sabão, álcool gel com fator menor que 70% (o indicado pela OMS – Organização Mundial da Saúde) e baixo índice de testagem são alguns dos problemas apontados.

A superlotação é outro fator que preocupa a população carcerária e também os responsáveis pela vigilância nos CDPs. O Diário levantou no site da SAP os dados das unidades masculinas da região, que concentram mais problemas prisionais. Na de Santo André, por exemplo, a capacidade é para 534 presos, mas o espaço mantém 1.248, enquanto em São Bernardo existem 1.401 detentos onde deveriam estar 844. Já em Diadema e Mauá, que dispõem de 613 e 626 vagas, as unidades mantêm 1.299 e 1.236 homens, respectivamente.

Informações obtidas pela reportagem apontam ainda que as celas dos CDPs comportariam, no máximo, 12 presos. Hoje, com cerca de 35 homens dormindo juntos em camas de pedra em tamanho destinado somente a uma pessoa, os problemas vão além da má acomodação, já que a umidade das celas, excesso de sujeira, falta de água e de produtos de higiene ocasionam, também, doenças como tuberculose, sarna e até DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis), contraídas, muitas vezes, nos vasos sanitários.

Integrante de grupo da UFABC (Universidade Federal do ABC) que pesquisa sobre segurança, violência e Justiça, Carlos Augusto Pereira de Almeida avalia que no momento é difícil imaginar políticas públicas que posam melhorar o sistema carcerário no País. Antes, segundo ele, é preciso entender como “os colocamos ali”. 

“Temos um País que encarcera muito, exageradamente, e se sabe que os presos sofrem maus-tratos e abuso. Mas quem são os presos? A maioria deles vem de áreas periféricas, são pessoas negras, pobres, e se for ver os crimes que as colocam lá, a maioria é por tráfico de drogas. Não são os grandes traficantes, os donos da mercadoria”, comenta.

JUMBO

Familiares dos detentos contaram ainda que os itens enviados pelo jumbo (sacola na qual mandam alimentos, roupas e produtos de higiene para os familiares detidos) não chega em sua totalidade ao destinatário, o que, segundo eles, interfere na “lei do crime”, já que o kit, muitas vezes, é garantidor de sobrevivência. As famílias explicam que os réus primários – novatos – muitas vezes têm de dar todos os itens aos “homens da casa”, ou seja, os chefes de facções, em troca da vida.

“Nas cartas, meu filho diz também que só recebem água duas vezes por dia, e que precisam dividir itens de higiene. Raramente todos conseguem tomar banho e escovar os dentes”, afirmou Lúcia (nome fictício), 43 anos, mãe de um detento do CDP de Santo André que prefere não se identificar. “A situação sempre foi péssima, mas agora, com a pandemia, como é que vão se manter com higiene se nem água eles têm?”, questionou.

A denúncia de Lúcia, porém, também acontece nos demais CDPs, o que foi confirmado por funcionários. Os servidores garantem que a falta de água os prejudica, e foi dificuldade a mais diante da pandemia. “Depois que passamos por revista, adentramos o portão e não saímos mais pelo período de 12 horas da jornada. E nós, funcionários, também ficamos sem água, até na descarga”, disse um agente penitenciário, que prefere não se identificar por medo de retaliação.

“Mandaram (SAP) lavar as mãos o tempo todo por causa da Covid. Mas como faremos isso sem água? É impossível”, continuou o funcionário.

Situação está à beira do caos, dizem agentes

As péssimas condições carcerárias do Grande ABC não são problema apenas para os detentos, já que agentes penitenciários dos CDPs (Centros de Detenção Provisória) da região afirmam passar por situações de perseguição, assédios moral e sexual, ameaças e maus-tratos. Além disso, o número de funcionários é baixo, o que causa sobrecarga de trabalho e prejudica as condições de segurança nos presídios.

Funcionários das penitenciárias garantem que foge ao imaginário o que existe internamente, já que, passando da portaria, onde ainda tudo parece funcionar, as grades que dividem o espaço do mundo real do carcerário escondem também discursos de ódio das diretorias contra os servidores.

“A verdade é que não tem respeito. Os funcionários sofrem perseguições, assédios, ameaças, e pedem afastamento, muitas vezes, por quadros severos de psicológico abalado. E não é com os detentos que temos problemas, mas sim com a chefia”, disse um servidor, que prefere manter o anonimato com medo de represálias.

No CDP de São Bernardo, por exemplo, os funcionários questionam o fato de estarem expostos diariamente a radiações, já que são submetidos a revista diária, sem proteção de coletes de chumbo. “Os equipamentos de proteção estão guardados no depósito. Mas os servidores não usam, e não porque não querem, mas porque a diretoria não fornece. Temos riscos severos, inclusive já declarados por médicos, pela alta exposição à radiação”, contou um agente.

Um outro servidor afirmou que as diretorias “brigam por ego”, e que os funcionários são alvo constante de humilhações. “A diretoria debocha de nós. Além disso, temos de trabalhar em plantão noturno em situação de absoluto risco. Os presos nos testam, porque sabem que temos menos força, já que, muitas vezes, um agente tem de dar conta de três alas, ou seja, cerca de 700 homens para um carcereiro. Não existe segurança”, apontou, contando ainda que acabam fazendo tarefas que não seriam de competência de seus cargos.

Presidente do sindicato da categoria, Fabio Jabá explicou que a superlotação de detentos, para um baixo efetivo de servidores carcerários, acontece em todo o Estado. “Temos casos de três policiais penais no plantão, que trabalham diretamente na carceragem, lidando com quase 2.000 presos”, afirmou.

Jabá ressaltou ainda que os ambientes, que já são insalubres, representam risco de contaminação de diversas doenças, inclusive aos funcionários. “A SAP liberou visita agora, mas não fez testagem (de Covid) nos presos. E nas unidades que fizeram, foi somente uma vez. Se tiver uma segunda onda de coronavírus, e um acometimento geral, como será feito? Temos de brigar agora para não ter uma situação ainda mais agravada.”

Questionada sobre o baixo efetivo, a pasta informou que durante o período de pandemia não haverá autorização para nomeação de novos agentes penitenciários, assim como ficam suspensos concursos públicos e admissões.

‘Passar período preso é como viver amostra grátis do inferno’

Um ex-detento ouvido pelo Diário afirmou que “passar um período preso é como viver uma amostra grátis do inferno”, e diz que o sofrimento do cárcere é maior aos que são julgados por “crimes menores”, como roubo, por não conseguirem se envolver com os “comandos”. “Pela diretoria, principalmente, somos tratados como lixo. Ficamos sujos, somos torturados, passamos fome, frio. Não tem nada pior do que viver dentro de uma cela”, disse Lucas (nome fictício), 22 anos.

Questionada, a SAP afirmou que “não há falta de suprimentos nem de água para os presos”, e que as unidades prisionais estão disponibilizando material de higiene e equipamentos de proteção, como máscaras. A pasta disse ainda, em nota, que as denúncias de familiares de presos “não procedem”, afirmando que, ao ser incluído na unidade, o preso recebe itens de higiene pessoal que são repostos de acordo com a necessidade de cada um, reforçando que as famílias estão autorizadas a enviar itens, via correio, e que a limpeza das celas, assim como das demais áreas, é realizada pelos próprios presos, “várias vezes ao dia, com hipoclorito de sódio”.

Com relação à falta de água, a secretaria disse que o fornecimento “segue normalmente e é capaz de garantir a higiene pessoal e coletiva”, e que ocorre trabalho de conscientização da população carcerária sobre o uso racional da água para evitar desperdício.

COVID

Conforme a SAP informou, até o dia 13 de novembro, 1.911 servidores do Estado testaram positivo para o coronavírus, sendo que 95,16% estão recuperados e 31 morreram – a taxa de letalidade é de 1,62%. Já entre presos, 10.272 testaram positivo para a enfermidade, dos quais 98,27% estão recuperados e 34 evoluíram a óbito – a taxa de letalidade é de 0,33%.

Segundo a pasta, o CDP de Santo André registrou 134 presos e sete funcionários com Covid. Já em São Bernardo a secretaria afirma que um preso e 11 servidores testaram positivo para a doença, enquanto em Diadema não houve presos contaminados, mas quatro funcionários foram infectados. Já em Mauá, 170 detentos foram acometidos e um morreu. Dos trabalhadores, 13 foram confirmados. 




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;