Cultura & Lazer Titulo Música
Origens do samba

Lira Neto lança primeiro volume do livro que
conta como surgiu ritmo que virou a ‘cara’ do País

Miriam Gimenes
13/03/2017 | 07:00
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Reprodução


 Era setembro de 1920 e o rei Alberto I e a rainha Elisabeth, da Bélgica, desembarcaram no Rio de Janeiro. Tal visita foi considerada pelo Itamaraty uma rara oportunidade de vender uma imagem positiva do Brasil à civilizada nação europeia e, para tanto, não mediu-se esforços.

Trataram de tirar os mendigos, prostitutas e pivetes das ruas, decoraram as vitrines da Avenida Rio Branco – onde passou a comitiva real – e o casal belga foi brindado, a bordo do navio, com a apresentação de um quinteto de cordas, que preparou um concerto erudito, mas encaixou no programa músicas brasileiras, entre elas Fala, Meu Louro, de José Barbosa da Silva, o Sinhô (1888-1930). Agradou tanto que – dizem – fez a rainha saracotear pelo convés. Essa é apenas uma das passagens notáveis do ritmo contadas no primeiro volume do recém-lançado Uma História do Samba: As Origens (Companhia das Letras, 376 páginas, R$ 64,90, em média), do escritor Lira Neto.

Apaixonado por música brasileira, Neto diz que a ideia de escrever sobre o samba surgiu como decorrência de seu trabalho anterior, a biografia do ex-presidente Getúlio Vargas. “Ao mapear as trajetórias pessoal e política de Getúlio, empreendi uma vasta pesquisa não só em torno dos contextos político e econômico brasileiro da primeira metade do século 20, mas também mergulhei no panorama sociocultural da época. Foi exatamente nesse período que o samba saiu de uma condição inicial de marginalização e invisibilidade social para se tornar o gênero musical hegemônico no País”, conta. Segundo ele, o projeto nacionalista da chamada Era Vargas buscou utilizar o samba como um dos elementos fundamentais na construção político-ideológica de uma suposta identidade nacional.

O seu foco na obra, diferentemente das outras que já trataram do assunto, é biográfico. “ Busco, a partir das trajetórias individuais dos principais compositores, intérpretes e instrumentistas do samba, estabelecer o processo de formação e consolidação de um gênero musical, de uma obra essencialmente coletiva.” Ele não se propõe, no entanto, a escrever uma história definitiva. “É, portanto, apenas uma das possibilidades de leitura e interpretação a respeito de um tema gigantesco, inesgotável.”

Entre as constatações, está que Pelo Telefone, registrado por Donga, não foi o marco inicial do ritmo, como muitos acreditam. “Antes de Pelo Telefone, pelo menos 20 outras músicas já haviam sido lançadas com o título ou o rótulo de samba no selo do disco, a exemplo do Samba do Urubu, do Samba dos Avacalhados e do Samba Roxo.”

O que Donga fez com grande maestria, acrescenta Neto, foi estabelecer uma estratégia eficiente para transformar uma música de extração essencialmente popular em grande sucesso do Carnaval e do então incipiente mercado fonográfico. “A extraordinária repercussão de Pelo Telefone acabou dando visibilidade a um tipo de música que antes ficava restrito aos fundos de quintais dos bairros negros e pobres do Rio de Janeiro.”

A próxima edição do livro deve sair em 2018, e tratará da Época de Ouro (1930-1940). A última, em 2019, partirá deste ponto até os dias de hoje.

VEJA O QUE MAIS LIRA NETO DISSE:
Diário - Qual a sua relação com o samba e como surgiu a ideia de fazer este livro?
Lira Neto - Sou apaixonado por música brasileira. Mas a ideia de escrever sobre o samba surgiu como decorrência de meu trabalho imediatamente anterior, a biografia do ex-presidente Getúlio Vargas, publicada em três volumes. Ao mapear a trajetória pessoal e política de Getúlio, empreendi uma vasta pesquisa não só em torno do contexto político e econômico brasileiro da primeira metade do século XX, mas também mergulhei no panorama sociocultural da época. Foi exatamente nesse período que o samba saiu de uma condição inicial de marginalização e invisibilidade social para se tornar o gênero musical hegemônico no país. O projeto nacionalista da chamada Era Vargas buscou utilizar o samba como um dos elementos fundamentais na construção político-ideológica de uma suposta “identidade nacional”. Nesse aspecto, as duas pesquisas se tocam, se interconectam, se retroalimentam.

Diário - Por conta da maioria dos biografados já terem morrido, você usa bastante de publicações da época para contar essa história. Como foi - e quanto tempo durou - essa apuração?
Neto - Recorri a um amplo leque de fontes históricas, incluindo a pesquisa nos jornais de época e em documentos policiais. Tanto em um quanto em outro caso, salta aos olhos e fica evidente ao pesquisador contemporâneo toda a imensa carga de preconceito e racismo com que o samba era encarado em seu processo de formação e consolidação como gênero musical. Os sambistas eram considerados, a priori, pela imprensa e pelas autoridades, um caso de polícia. Um detalhe cronológico serve para ilustrar isso muito bem: em 1890, dois anos após a abolição da escravatura, foi decretada a chamada Lei da Vadiagem, que punia com pena de prisão todo indivíduo que não tivesse ocupação fixa. Logicamente, o principal alvo do aparato repressivo eram os negros, então recém-libertos, que não tiveram condições de se inserir nos novos modelos do mundo do trabalho. Essa pesquisa me tomou, até aqui, dois anos e meio de trabalho. Mas ela segue em frente. Tenho mais dois volumes pela frente.

Diário -"Pelo telefone", que até então seria o marco da criação do samba, na verdade não é. Por que se criou esse ''mito''? Foi por conta do trabalho de ''marketing'' do Donga?
Neto - Antes de “Pelo telefone”, pelo menos vinte outras músicas já haviam sido lançadas com o título ou o rótulo de samba no selo do disco, a exemplo do “Samba do urubu”, do “Samba dos avacalhados” e do “Samba roxo”. O que Donga fez, com grande maestria, foi estabelecer uma estratégia eficientíssima para transformar uma música de extração essencialmente popular em grande sucesso do Carnaval e do então incipiente mercado fonográfico. A extraordinária repercussão de “Pelo telefone” acabou dando visibilidade a um tipo de música que antes ficava restrito aos fundos de quintais dos bairros negros e pobres do Rio de Janeiro.

Diário - Qual é o diferencial da sua publicação para as outras que retratam a história do samba?
Neto - Meu foco é o biográfico. Busco, a partir das trajetórias individuais dos principais compositores, intérpretes e instrumentistas do samba, estabelecer o processo de formação e consolidação de um gênero musical, de uma obra essencialmente coletiva. Além disso, não me proponho a escrever a história definitiva do samba, tanto que o título é Uma história do samba – e não A história do samba. É, portanto, apenas uma das possibilidades de leitura e interpretação a respeito de um tema gigantesco, inesgotável.

Diário - À época do Estado Novo o samba era usado como o ''pão e circo'' para população. Mudou algo nos dias de hoje?
Neto - Ao longo da história, o samba foi utilizado das mais diversas maneiras, seja pelo Estado ou pela indústria do entretenimento, que procuraram domesticá-lo politicamente e, ao mesmo tempo, enquadrá-lo na lógica do mercado fonográfico e nas engrenagens da indústria do entretenimento. Isso não se deu, obviamente, sem doses consideráveis de violência, tanto física quanto simbólica. O fascinante é perceber como o samba, submetido a esse processo essencialmente conflitivo, soube se reinventar de maneira permanente. Mesmo enfrentando preconceitos, ouvindo desacatos, padecendo segregações, os sambistas encontraram uma forma de negociar espaços, de atuar pelas bordas e pelas brechas, afirmando-se como artistas e como indivíduos.

Diário - O samba promoveu visibilidade, inclusive no início do século passado, para pessoas até então invisíveis. Acha que ele permanece com a mesma missão?
Neto - O samba surgiu em um cenário no qual seus protagonistas experimentavam um estágio de completa invisibilidade social. Os primeiros sambistas sofreram na pele toda ordem de preconceitos, racismos, perseguições, violências, abusos e agressões. Ainda hoje, essa realidade de exclusão permanece para milhões de pessoas que vivem nas periferias, nas favelas, nos subúrbios mais distantes de nossas capitais. A música, a cultura de rua e a arte de modo geral são ferramentas poderosas de afirmação, devido ao seu caráter libertário e insubmisso. O protagonismo que o samba desempenhou e continua desempenhando comunga da mesma riqueza de significados políticos de gêneros mais contemporâneos, como o hip hop e o grafite.

Diário - O samba, para você, é a cara do Brasil''?
Neto - Meu mestre e camarada Luiz Antônio Simas, autor de vários livros sobre o samba e a cultura das ruas cariocas, afirma que o samba é “a mais fascinante e sofisticada aventura civilizatória do Brasil”. Para Simas, o samba é um complexo cultural que determinou a construção de hábitos cotidianos, a construção de uma consciência comunitária, jeitos de comer, beber, vestir, enterrar os mortos, celebrar os deuses e louvar os ancestrais. Concordo plenamente com ele.

Diário - O que prepara para os dois próximos volumes? Tem previsão de publicação?
Neto - O segundo volume, que será lançado em 2018, abrangerá a chamada Época de Ouro, isto é, o espaço temporal entre o início da década de 1930 e meados da década de 1940. O terceiro, com lançamento previsto para 2019, segue desse ponto em diante e chega até as derivações contemporâneas do samba.

Livro infantojuvenil retrata o gênero
A fim de contar a história do samba e da bossa nova para as filhas, a jornalista Carla Gullo procurou uma publicação para ajudá-la. Não achou nada voltado para o público infantojuvenil e decidiu, junto à cantora e historiadora Rita Gulo e a Camilo Vannuchi, escrever Samba e Bossa Nova (Moderna, 64 páginas, R$ 44, em média), que tem ilustrações de Carlos Araujo.

O livro recém-lançado faz parte da Coleção Ritmos do Brasil – que já publicou Choro e Música Caipira e Jovem Guarda e Tropicália. Ele conta para as crianças e adolescentes, de maneira simples, divertida e fácil de entender, dois dos mais populares gêneros musicais do País. “A nossa memória não é valorizada no Brasil. É um pouco clichê, mas é uma verdade. Não se pensa muito em resgatar essa memória musical, inclusive para as crianças, porque acham que elas não terão interesse, o que não é verdade. Tudo que é legal, que é curioso, que você compara, brinca com elas, elas vão se interessar”, acredita Carla.

E assim é o livro. Traçando paralelos com o contexto histórico da época, munido de muitas curiosidades e ilustrações diferenciadas, é o prato cheio, não só para os pais ensinarem sobre os ritmos em casa, como também para os professores usarem em aula.




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