Setecidades Titulo
Gente do ABC - Barná chapa quente
Illenia Negrin
Do Diário do Grande ABC
19/02/2006 | 07:46
Compartilhar notícia


Em 1967, o cardiologista Christian Barnard realizou o primeiro transplante de coração do mundo. Ficou famoso em todo canto. Na mesma época, o jovem Antonio da Silva Filho, então com 21 anos, trabalhava numa empresa de eletrônica. Não tinha ambição nem namorada. No ano seguinte, muita coisa mudou; mudou de emprego duas vezes, trocou o dia pela noite, foi parar atrás do balcão da Padaria Central, em Santo André. De olho no comércio vizinho, conheceu a futura mulher. Mandou bilhetinho. Ela respondeu. Meses depois estavam de aliança no dedo. Estão juntos há 37 anos, têm três filhos e três netas. Mas ele tem um casamento ainda mais antigo. Boemia é o nome da “outra”. Há 40 anos, ele trabalha na madrugada. Quando o dia escurece, Antonio, 60 anos, conhecidíssimo como Barná, pega no batente. É um dos chapeiros mais requisitados da região. Não tem clientes, tem seguidores. Muda de bar e arrasta a freguesia. Nem ele sabe por que faz tanto sucesso. “Ser chapeiro é a coisa mais simples do mundo.”

Depois, deixa a modéstia descansar. Admite que é o cara dos lanches, e do caldo de mocotó, da feijoada. E do PC, o Prato Completo, dois bifes, dois ovos fritos e muito queijo. Mas não revela o segredo. “Deve ser a mão. Ou a turma gosta muito de mim, não sei. Nem tempero especial eu uso, só sal e orégano”, conta, segurando faca e espátula, malabares nas mãos dele.

Mesmo depois de tantos anos de profissão e apreciado por um público fiel, o chapeiro nunca teve o próprio negócio, ainda que todo mundo pense que o bar é dele. Há dois anos, fica difícil de explicar o contrário, já que o apelido dele está estampado em letras bem grandes na porta. Mas tanta propaganda não é título de propriedade. Barná virou grife. “O dono do bar me chamou pra trabalhar para ele. E eu emprestei meu nome, pra atrair mais movimento. Em Santo André tem dois bares com o meu nome, mas nenhum é meu de fato.”

Ele até que tentou ficar longe da quentura da chapa. Durante quatro anos, fez bicos e depois ingressou na Frente de Trabalho da Prefeitura. Cuidava do Centro Comunitário da Vila Linda, bairro onde mora com a mulher e o filho caçula. Lá, era chamado de seu Antonio. Não demorou para voltar a ser o Barná. “O bar é uma prisão, sabia? Não dá pra sair, de jeito nenhum. Minha folga é durante a semana, quando está todo mundo trabalhando. Aproveito e vou pescar.” Reclama. Mas não larga. Vive humilde, não tem carro. Aliás, não sabe dirigir.

Não é só a comida preparada por ele que alimenta sua fama. Ele é muito simpático. Adora jogar conversa fora, coleciona piada, causo, problema dos outros. A desgraça alheia ele procura evitar. “Sou muito sentimental. Choro muito fácil. Fico abalado, perco o sono.” Conselho ele distribui quando o caso é grave, com a bênção do preto velho e do Ogum sete ondas. Tem risada fácil, escancarada, que parece menor de fato por causa do bigode, cultivado a vida inteira. “Tenho 60 anos mas pareço que tenho menos. Se pintasse o cabelo, ia parecer um menino. Quando tinha 20 anos, era igual ao Elvis. Olha só esses caras dos Rolling Stones. Têm a minha idade e estão acabados. Rir evita ruga, porque mexe a cara.”

Barná é corintiano, mas do tipo sincero, que admite quando o time não joga nada. Vive cantoralando, mas música do tempo dele, Nelson Gonçalvez, a máquina não conhece, não. Vai se aposentar por idade daqui a cinco anos. Mas só vai parar de trabalhar quando “São Pedro precisar de um chapeiro lá em cima e mandar me chamar.”

Mas o que o pioneiro em transplante de coração tem a ver com o chapeiro de Santo André? É do cardiologista que vem o apelido Barná. “Tinha um engraxate doido, o Teco, que trabalhava em frente ao bar Marisco. Era no tempo que eu estava começando. Um dia ele me olhou, devia estar meio bêbado, e disse: ‘Antonio, você é que nem aquele médico, Barnard. Ele tira coração de um e põe em outro. Você tira carne da chapa e põe no lanche, faz transplante de lanche’. Aí pegou.”




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;