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Uma ode à infância sacrificada
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
04/02/2005 | 14:20
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O que está em jogo no longa Em Busca da Terra do Nunca é a questão da verdadeira autoria de uma criação, no caso o personagem Peter Pan. O garoto que nunca envelhece, embora tenha se tornado centenário no ano passado, é o protagonista da peça de James M. Barrie, inspirado em Peter, um dos quatro irmãos Davies que o dramaturgo conheceu em Londres. Lá pelo desfecho do filme, um diálogo discute quem é o Peter Pan de fato, o homem de sonhos infantis ou o moleque que anseia a maturidade, para não ser mais enganado pelos adultos. Assim está sintetizado o melhor da obra de Marc Forster, que estréia nesta sexta-feira em quatro salas da região e é candidata a melhor filme no Oscar 2005, entre outras seis indicações.

Forster protagoniza um pequeno debate, que volta à baila toda vez que um filme se diz “baseado em fatos reais”. É o que Em Busca da Terra do Nunca pretende, embora se entrincheire na ficção, com mínimo compromisso documental.

J.M. Barrie (Johnny Depp, indicado ao Oscar) amarga um fracasso retumbante por conta de sua última peça encenada e sofre certa pressão de seu produtor, Charles Frohman (Dustin Hoffman), para criar um novo texto. Desinteressado pela mulher (Radha Mitchell), Barrie busca inspiração durante rolés no parque, onde conhece a viúva Sylvia (Kate Winslet) e seus quatro filhos, entre os quais Peter (Freddie Highmore), o mais resistente à sua influência pela falta recente do pai. É o de personalidade mais complexa segundo a câmera de Forster, e o molde de inspiração para o espoleta habitante da Terra do Nunca.

Dramaturgo e viúva conduzem uma relação casta, vista com reservas pela mãe dela (Julie Chistie). Essa relação estranha, por sua indefinição sentimental na narrativa, nos leva a consultar o material de divulgação de Em Busca da Terra do Nunca. E eis que este nos informa que Barrie começou a freqüentar a casa dos Davies quando o pai da família ainda vivia (morreria anos depois).

É bem verdade que o descumprimento às ocorrências reais não deve orientar exclusivamente a avaliação de uma obra de ficção nelas baseadas. A questão é que, a partir delas, Marc Forster elabora contextos emocionais para a história central – o bate-bola entre a imaginação de Barrie e a vida do menino Peter – que estão destituídos de emoção, defensivos demais. Têm um caráter de notas de rodapé para mostrar o quão incompreendido foi um homem adulto que observava a realidade conforme mecanismos mentais infantis. Menos ajudam que atrapalham.

Em Busca da Terra do Nunca, entretanto, se fortalece na relação musa/poeta. Na cena em que Barrie e a família Davies brincam de piratas num quintal, Forster nos oferece uma viagem pela imaginação dos participantes do folguedo, com navios e mares criados mentalmente e traduzidos visualmente. Com recursos essencialmente cinematográficos, ilustra ali o ponto de comunhão entre aqueles personagens: a infância, experiência comum a todos. Afinal, criança, quem não é mais, um dia já foi. A cena em que Sylvia conhece a Terra do Nunca, tão alardeada por Barrie, evoca justamente isso, início e fim, descoberta e morte, infância e velhice. Lindo.

A única engrenagem robusta do filme são os conflitos entre Barrie e Peter, sempre em torno da maturidade, tardia no adulto, precoce na criança. Ali, uma infância está sendo sacrificada pela dor da perda paterna, em oposição à infância perene em um homem feito. Em outra leitura, são os dogmas da sociedade em conflito com os impulsos irrefreáveis do ser, ora em papéis trocados. Nesse ponto, Em Busca da Terra do Nunca vinga. No restante, Forster assimila em sua arte as pulsões do J.M. Barrie que ele retrata: na escola das emoções e das problemáticas adultas, parece ter abandonado o curso no primário.



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