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‘Alexandre’ de Oliver Stone chega aos cinemas
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
14/01/2005 | 16:08
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Faltava alguma coisa para Oliver Stone estufar-se feito pombo e extravasar de vez a arrogância que transparece em boa parte de sua obra? Com Alexandre não falta mais. O maior conquistador militar que o Ocidente já divisou protagoniza o novo filme do diretor norte-americano. E tinha de ser o imperador macedônio – a quem até Napoleão reverenciava, dizem – o personagem histórico a povoar as câmeras do cineasta, este adorador de tudo que representa “o maior”, de tudo que é superior em termos históricos objetivos. A arte de Stone pretende ser tão grande quanto o protagonista do épico que estréia nesta sexta-feira em quatro salas do Grande ABC.

Foram destinados para Alexandre US$ 150 milhões, o mais elástico dos orçamentos de que já usufruiu Stone em sua carreira. A realização de seu épico – e concomitantemente sua frustrada carreira comercial, com US$ 34 milhões em arrecadação nos Estados Unidos – é diretamente responsável pelo aborto (até segunda ordem) de uma outra versão sobre os feitos alexandrinos, a ser operada por Baz Luhrmann (Moulin Rouge) e estrelada por Leonardo DiCaprio e Nicole Kidman.

No Alexandre que vingou, o ator irlandês Colin Farrell é invólucro – talvez a palavra caiba melhor que intérprete neste caso – para a figura de Alexandre III Magno (356a.C.-323a.C.), chamado o Grande. A caracterização do personagem, guarnecido por madeixas douradas, fará o espectador recordar ora de Wanderléia, a ternurinha, ora de MacGyver, conforme o comprimento dos cabelos. E nem é o visual nórdico a principal das pulgas a ter acampado atrás das orelhas de estudiosos e historiadores.

Stone retrata um Alexandre bissexual e sugestivamente incestuoso. Filho do rei Felipe II (Val Kilmer) e de Olímpia (Angelina Jolie), o personagem cresce observado pelo preceptor Aristóteles (Christopher Plummer), doma o irascível Bucéfalo que lhe carregaria no lombo por longos quilômetros, e nutre uma amizade, digamos, um pouquinho mais colorida com Hephastion (Jared Lato). Com a mãe, a insinuação é de uma relação que transcende a maternidade.

Oliver Stone possui uma atração excessiva pela polêmica, e a sexualidade do protagonista ali está de tal forma destacada que frustra o projeto de fazer de Alexandre uma saga irrigada pelo amor elevado à última potência. Um amor que desconhece convenções sexuais e mesmo familiares; um amor que desconhece fronteiras e culturas distintas; um amor (pelo imperialismo e pelo poder) capaz de anexar sob o signo do helenismo territórios da Grécia, do Egito, da Pérsia e da Caxemira (Índia) por onde o imperador salpicou suas Alexandrias.

A concepção de amor que o cineasta demonstra atravessa o limite da mania, da obsessão. Do modo como filma manifestações de carinho – interpretações, fotografia, ambiência, diálogos; tudo categoricamente superlativo, tanto quanto as cenas de batalha –, o amor se estabelece como uma imposição e base de negociação no tabuleiro do poder, mesmo que a intenção seja a ternura, especialmente na relação entre Alexandre e Hephastion.

Alexandre se encaixa sem sobras no que Stone pratica enquanto discurso: um cinema de estrépito, um cinema de soberba, um cinema que ostente sua fé na hegemonia da nação americana, não propriamente do Estado americano. Cabe aqui uma observação: talvez não seja adequado chamar a obra de Stone de norte-americana como recomendam os manuais de redação, mas simplesmente de americana. Sua presunção como autor alinha-se àquela que chama seu país de América, como se a denominação se restringisse à faixa de terra compreendida entre México e Canadá, e não a todo um continente – do México para baixo somos simplesmente a massa latina, e os canadenses são, hum..., canadenses.

Neste quadro de exclusão pelo totalitarismo, Stone serpenteou pela maior vergonha militar americana (a guerra do Vietnã, em que serviu como militar, em Platoon, Nascido em 4 de Julho e Entre o Céu e a Terra); pelo maior escândalo político americano (o caso Watergate em Nixon); pela maior conspiração política americana (o assassinato de Kennedy em JFK – A Pergunta que não Quer Calar); pelo esporte exclusivamente americano (o futebol americano em Um Domingo Qualquer); pela maior praça da economia capitalista, portanto americana (Wall Street). Mesmo quando produz o documentário Comandante!, o faz porque Fidel Castro é o mais renitente dos opositores do status quo político representado pelos americanos; Cuba só existe como extremo de uma comparação.

Imaginar que Alexandre, distante em tempo e espaço, desvia dessa exaltação disfarçada de análise da caixa-preta da América é mero engano. Em seus avanços imperialistas, Alexandre jura em um deserto que caçará o foragido Dario III (Raz Degan), monarca da Pérsia que ele em breve conquistará, até o inferno. Alguém pensou no duelo George W. Bush x Osama Bin Laden?

Oliver Stone parece simpatizar com o imperialismo como necessidade da nação americana (as hordas alexandrinas que insistem em voltar para casa, mas sem abrir mão da colonização precedente), quando afaga um Alexandre solidário e amoroso. E quando demonstra contestar os meios em voga para alcançar o unilateralismo, embora ele o propague como destino e identidade de sua nação, projeta Bush e o Estado americano em um Alexandre febril e delirante. Manipulação irrestrita, megalomania e fatos históricos tornados propriedade privada; Alexandre é, definitivamente, um filme de Oliver Stone.



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