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O gosto amargo das coisas
Por Rodolfo de Souza
18/10/2020 | 07:00
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Dia desses, eu amargava um dilema, e nele me debrucei para, quem sabe, chegar a conclusão plausível. Fato é que a vida começa a perder o sabor quando vemos a hipocrisia se consagrar vencedora e, por conseguinte, senhora do destino. Talvez fizesse mais sentido para o leitor ver aqui o termo ‘amargo’ usado para designar o gosto deste palco de muitas tragédias, embora ‘sem sabor’ eu considere de maior realce para o prato que degustamos diariamente. Insípido que só vendo!

E o entediante caminhar dos ponteiros do relógio contribui para criar em toda a gente o costume pelo que é ruim, mas rotineiro. Percebo até, no velho tique-taque, uma intenção sutil de bulir com os nossos sentimentos, oferecendo sempre um aperitivo do que vem por aí. É a máquina que anuncia a passagem do tempo, segundo a segundo, ciente que é da inquietação humana. Talvez seja mesmo o único aparelho que carrega consigo uma alma. E o quadro nefasto pintado nesta relação de irmandade, homem máquina, faz com que a tristeza desembarque devagar em nossos corações, com a clara intenção de nele estabelecer endereço fixo. Conta, pois não, com a saída da esperança que provavelmente se pulverizará, misturando-se ao pó do que um dia caminhara, cheio de brilho, por este mundo de meu Deus.

Ocorre, então, que a amargura se torna, num piscar de olhos, dona dos nossos pensamentos, o que, sem dúvida, volta o nosso paladar para o aspecto amargo das coisas, como se não houvesse outro. E nos habituamos de tal forma com ele que rapidamente passa do amargo para o insípido, para a comida que não tem a menor graça por não ter gosto. Comida de hospital, sabe?

E o doce sabor dos sonhos que almejávamos alcançar começa a ganhar distância quando a perspectiva de épocas melhores escasseia e nos bota cabisbaixos como o diabo. Introspectivos de verdade. E o passado, tinhoso que só vendo, sempre encontra espaço para se manifestar em horas como essas, cochichando em nossos ouvidos sobre quando nossa ingenuidade não suspeitava de que o acre sabor dos tempos vindouros sabotaria o nosso paladar que sonhava saborear uma vida melhor num país melhor.

Mesmo assim, vez ou outra, bate lá no fundo a esperança de que a vida um dia tornará a ter sabor. Isso logicamente se dará quando o preço salgado dos alimentos baixar; quando o cheiro da fumaça, que vem das matas em chamas, desaparecer; quando o miasma, fruto das negociatas que minam o presente e o futuro deste País, cessar por completo; quando for extirpado do seio da população o cancro que fomenta a desigualdade social; quando os poderes se desapegarem do dinheiro fácil e voltarem os olhos para a verdade... Admito que, na atual conjuntura, tudo isso soa como puro devaneio. Entretanto, de que forma podemos sentir novamente o sabor da vida, senão pelo sonho que não deve morrer jamais?

Até outro dia eu acompanhava os noticiários da política. Depois cansei. Cansei de testemunhar o mal ocupando sempre o ponto mais alto do pódio; cansei de saber dos conchavos que deitam por terra qualquer anseio por uma vida melhor, por mais básica que seja, deste povo sofrido e manipulado; de ver a educação e a cultura massacradas para que as pessoas se distanciem cada vez mais do saber. Afinal, gente que não sabe desconhece o seu valor, o seu poder e dá as costas para o conhecimento, por não ter afinidade com ele, por lhe parecer estranho e hostil. Só o futebol, a novelinha ordinária, os programinhas de auditório, as fofocas sobre a vida de artistas interessam e sustentam a ideia de bem-estar. E o conformismo generalizado revela ao povo distraído que sua função é tão somente servir a uma elite que nada no ouro e que tem como único e árduo trabalho manter tudo como está, com os ventos soprando a seu favor, sempre.




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