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Invasão silenciosa
Mário Alberto C. Silva Neto
Geórgia C. Atella
18/01/2010 | 07:02
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A doença de Chagas, descoberta e analisada pelo médico sanitarista brasileiro Carlos Chagas (1878-1934), continua a ser estudada e ainda surpreende e inquieta os pesquisadores. Recentemente, veio à tona novo aspecto da transferência do Trypanosoma cruzi - protozoário causador da doença - entre o inseto transmissor (o barbeiro) e o hospedeiro humano.

Ao contrário do que se acreditava, o inseto não é apenas um inoculador do parasito. Moléculas presentes em sua saliva e em suas fezes podem determinar o sucesso da infecção, tornando-a mais "silenciosa" e dificultando a percepção dos protozoários pelas células do sistema de defesa humano.

Barbeiros, ou chupões, são nomes populares dos insetos da ordem dos percevejos que são vetores da doença de Chagas. A interação do barbeiro com o T. cruzi começa com a ingestão do parasito, durante sua refeição em um ser humano infectado pelo protozoário.

Sempre foi difícil entender por que a perfuração da pele, seguida da injeção da saliva e, muitas vezes, da contaminação do local pelas fezes do barbeiro (infectadas pelo T. cruzi em alguns casos), não causa no local intensa resposta inflamatória e forte reação do sistema imune do hospedeiro. Essas reações são naturais, já que nossa pele é constantemente patrulhada por células especializadas no reconhecimento de moléculas estranhas ao nosso organismo, mas, em geral, ocorrem de maneira reduzida no caso de picadas de barbeiros.

Algumas dessas células são chamadas de macrófagos. Elas são capazes de reconhecer, envolver os agentes patogênicos e trazê-los para seu interior para matá-los. Esse processo é denominado fagocitose.


Mistérios na transmissão e patogênese

Por muito tempo, os pesquisadores suspeitaram que insetos vetores de certas doenças produziam moléculas que silenciavam a resposta imunológica local. Ou seja, que diminuíam a ação microbicida dos macrófagos do hospedeiro contra os agentes patogênicos inoculados. Até agora, no entanto, a maioria das proteínas encontradas na saliva dos vetores da doença de Chagas não havia apresentado propriedades imunossupressoras.

Nosso grupo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, estuda essas moléculas e, há cerca de seis anos, descobriu que a saliva do barbeiro contém, além de proteínas, um conjunto de substâncias (chamadas fosfolipídios). Tais compostos, assim como os demais componentes da saliva, são injetados na pele do hospedeiro durante a alimentação do inseto. Um deles atraiu particularmente a nossa atenção: a lisofosfatidilcolina (conhecida pela sigla LPC).

A presença da LPC na saliva do barbeiro é muito interessante, pois inicialmente imaginamos que se tratava de mais um composto anti-hemostático, ou seja, que evitava o estancamento do sangramento.

Entretanto, descobrimos posteriormente que a interação da saliva com a pele prepara o local para uma posterior colonização pelo parasito, que pode chegar até ali nas fezes do inseto. Mas como isso aconteceria?

A partir de experimentos, observamos que os macrófagos sofriam modificações ao entrar em contato com a saliva. Estávamos, portanto, diante de um novo mecanismo que, por um lado, maximizava a infecção por atrair as células de defesa do hospedeiro, mas por outro as tornava mais suscetíveis à invasão pelo T. cruzi.

O mecanismo de silenciamento do sistema de defesa do hospedeiro pela LPC da saliva do barbeiro apresenta outras características interessantes. A LPC pode não ser reconhecida, pelo ser humano, como uma molécula estranha. Isso acontece pois sua estrutura química é rigorosamente a mesma de LPCs normalmente encontradas no plasma humano.

Outro grupo brasileiro, chefiado pela bioquímica Maria Julia Manso Alves, da Universidade de São Paulo, descreveu que aparentemente o parasito também libera LPC. Assim, a presença da LPC, seja aquela da saliva e das fezes do inseto vetor ou aquela talvez liberada na circulação do hospedeiro pelo próprio T. cruzi, parece sempre conspirar a favor do parasito.

Esses dados, revelados somente agora a partir de observações no vetor, no parasito e no hospedeiro humano, nos ensinam que, embora as descobertas de Carlos Chagas sejam centenárias, ainda existem, na transmissão e na patogênese da doença identificada por ele, uma série de mecanismos de evolução molecular muito antigos e, em sua maioria, não plenamente conhecidos. MACSN e GCA




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