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Drogas: sobreviventes de uma tragédia social
Por Do Diário do Grande ABC
12/04/2003 | 18:33
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A história de S.C.L., 32 anos, tem começo dramático e final feliz. Filho de uma família bem estruturada, de classe média, ele se tornou dependente químico aos 14 anos. Na adolescência, começou a fumar maconha, depois passou a cheirar cocaína. L. estudava em colégio particular e vendia droga para os colegas. “Eu atravessava alguns colegas.”

Além de avião (passador de droga), L. passou a andar armado. Praticava assaltos, roubava carros e motos. Fez quatro tatuagens no corpo. Nesse período, viu gente ser assassinada, escapou de uma chacina, chegou a ser jurado de morte e quase foi executado por engano (o traficante o confundiu com um policial).

Perseguido pela polícia, L. ficou um ano fora da região, escondido em outro Estado. Na volta, achou que era hora de mudar de vida. Parou de usar cocaína. Arrumou emprego. Casou. Teve um filho. E sofreu recaídas. Numa delas, teve um princípio de overdose. Escapou por pouco.

Com o nascimento de sua segunda filha, ele decidiu que não usaria mais drogas. Faz três anos que L. está limpo (expressão usada por grupos de apoio a usuários de droga). Acompanhe o seu relato:

Início – “Comecei com cigarro, bebida, maconha. Usava também medicamentos controlados, que a gente comprava nas farmácias certas. Tomava os calmantes, misturados com bebidas. Sempre tomei muita bebida forte: conhaque, vodca, uísque. Era um vício cruzado: droga e bebida. Uma vez cheguei a tomar um litro de conhaque em um dia.”

Criminalidade – “Dos 15 aos 20 anos, passei a roubar e a furtar. Apesar de pertencer a uma família bem estruturada, de classe média, evangélica e de estudar em escola particular, tinha amigos que roubavam carro, moto, iam em desmanches. A maioria desse pessoal está morta. Eu escapei, porque fiquei um ano fora do Estado.”

Perigo – “Quando eu andava com essa turma, a gente estava parado na esquina, fumando maconha. Um dos meus colegas estava jurado (de morte). Vimos um carro parar. Os vidros baixaram e saiu um monte de arma lá de dentro. Comecei a correr. As balas voavam pra cima da gente. O alvo era o jurado, mas se acertar em você, acertou. Um cara correu junto comigo, sem perceber que tinha levado um tiro na perna. Só quando o corpo esfria, você vê o sangue escorrendo e sente a dor. Nós voltamos ao local e o sujeito jurado estava esticado, cheio de balas.”

Roleta-russa – “Tive uma briga com um colega, chamado Gordinho. A gente trocou socos. Ele veio me matar, com um revólver na mão. Uma amiga comum entrou na frente do revólver e salvou a minha vida. Ele não atirou, mas disse que iria me matar. Eu falei que ele é que iria morrer e não seria eu que o mataria. Desejei muito que ele morresse. Nós tínhamos um conhecido comum, o Russo, que ganhou esse apelido porque gostava de fazer roleta-russa na cabeça dos amigos. O pessoal vinha e pedia pra ele: ‘Faz em mim, Russo’. E ele disparava o gatilho, com o tambor do revólver vazio. Um dia, durante um casamento, o Gordinho veio com dois copos de cerveja na mão. O Russo encostou o cano do revólver na cabeça dele e disparou. Só que tinha uma bala lá dentro e atravessou a cabeça do Gordinho. Nessa hora, passei a acreditar em bem e mal, em Deus e no Diabo.”

Cocaína – “A droga era o meu café. A ansiedade de cheirar era tanta que eu não conseguia nem comer pela manhã. Mesmo se tentasse engolir alguma coisa, vomitava. Você fica fissurado. Só de pegar a droga na mão, se sente aliviado. Na minha lua-de-mel, levei cocaína. Minha mulher sabia que eu era usuário, mas não tinha noção. Ela ficou assustada quando me viu usando em muita quantidade.”

Caderneta – “Eu saía do trabalho na hora do almoço. Enquanto algumas pessoas almoçam e vão tomar café com os amigos, eu corria para a boca. Pegava oito papelotes (cada um custava R$ 10). O dono da boca era meu amigo. Eu não pagava todo dia. Pedia para ele anotar na caderneta. Passei a gastar o dinheiro que tinha e não tinha. Até o dinheiro do aluguel era gasto em drogas. O meu cheque especial foi para o beleléu. Devo ter gasto o equivalente ao valor de um carro na boca.”

Dívida – “A minha dívida na boca chegou a R$ 2 mil. Se você não paga, é morte. Se você falar grosso, ‘olha, meu, não estou a fim de saldar minha conta’, não sai vivo de lá. Quando o pessoal vai atrás de você, é pra dar baixa. Não tem cerimônia. Não é filme. O sujeito corre atrás e mata mesmo. Isso acontece todo dia.”

Pagamento – “Minha mulher arrumou os R$ 2 mil. Pedi para ela ir comigo na boca. Eu tinha certeza que se ela me deixasse sozinho ia gastar os R$ 2 mil em droga, não ia pagar a conta e hoje não estaria aqui. Ela me acompanhou. Levou os R$ 2 mil e entregou na mão do patrão (dono da boca).”

Engatilhado – “Eu era amigo do dono da boca. Tomava café na casa dele. Brincava com os filhos. Um dia cheguei lá, o dono estava muito louco e não me reconheceu. Não sei por que ele achou que eu era policial. Ele pegou um revólver, engatilhou e encostou na minha cabeça. Começou a gritar: ‘Você é polícia! Vai morrer!’ Eu gritava, falava meu nome, repetia nomes que ele conhecia. Chegar na boca é sempre um problema. Se você entrar com o farol do carro alto, leva bala.”

Saúde – “Depois de um tempo usando droga, você perde o sono, o apetite e fica impotente. Não tem um cara que use cocaína que coma, durma direito e faça sexo normalmente. O organismo não agüenta de tanta fraqueza. Eu andava tão fissurado que pegava o papelote de cocaína e chupava para aproveitar as sobras. Fazia um chiclete daquilo. O meu estômago sangrava. Eu vomitava sangue.”

Overdose – “A última vez foi há dois anos e dois meses. Eu queria dar uma volta sozinho e minha mulher não queria que eu saísse. Ela estava grávida de nove meses. A criança poderia nascer a qualquer momento. Lembro de ter discutido com ela. Peguei a chave e os documentos do carro. Estava chovendo. Comprei vários litros de bebida e uns 15 a 20 papelotes de cocaína. Bati o carro. Entrei com tudo em umas estacas de ferro. Fui no orelhão e liguei para casa. Avisei que não ia voltar mais, pra ninguém me procurar. Entrei em um quarto de hotel barato. Fiquei o fim de semana bebendo, fumando e cheirando. Sem comer nada. Acordei na segunda-feira. Saí andando. Liguei para o meu irmão e avisei: ‘Estou morrendo. Vem me salvar’. Deitei na sarjeta. Comecei a vomitar. Tremia muito. A língua enrolava na boca. Vou morrer, pensei. Foi o meu fundo do poço.”

Recuperação – “Procurei grupos de apoio. Fui em uma psiquiatra e contei tudo que tinha acontecido comigo. ‘Sou viciado em drogas. Uso altas doses. Isso está me matando.’ Ela me receitou antidepressivos, para controlar a ansiedade da droga. Quando batesse a vontade, o calmante baixava a minha adrenalina. Levei um ultimato da minha mulher e da minha família. Não bebi mais, nem consumi drogas. Foi uma luta. Vontade de usar eu tenho até hoje.”




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