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Um gnocco, dois gnocchi, jamais inhoque
Silvio Lancellotti
Especial para o Diário
03/02/2008 | 07:06
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Nos tempos dos romanos, os cozinheiros de plantão já perpetravam as suas pelotinhas de farinha com água, eventualmente a liga do ovo, de modo a servi-las num caldo de carne qualquer. Coube aos romanos, invasores de toda a Europa, aliás, a primazia do espalhamento de tão curiosa iguaria através do Velho Continente.

Não se conhece, precisamente, a etimologia da expressão que caracterizava as pelotinhas: de nodi, ou nocche, palavras que se traduziam por “nós”, “torrões”, ou mesmo “coisas grudentas”, na Áustria-Hungria as tais bolinhas se transformaram em knohha, na Germânia em knoeldn. Daí, foi no século 6, provavelmente, que os povos longobardos, invasores tedescos do norte da Bota, cunharam os termos gnocco, no singular, e gnocchi, no plural.

Ironicamente, apesar do prazer que propiciavam, num brodo, numa sopa, especialmente nas noites mais frias, as pelotinhas assumiram um sentido pejorativo. Tem cerca de 1.000 e tantos anos um provérbio da Toscana, no miolo da Itália, que prega: “Ognuno può fare della sua pasta gnocchi”. Tradução: “Qualquer pessoa é capaz de transformar a sua massa numa enorme droga”.

Gnocco virou sinônimo de cretino, de imbecil. A sua formulação básica, porém, sempre a farinha, a água e o ovo, aqui e ali um toque de parmesão raladinho e de pimenta-do-reino, invadiu os menus dos palácios aristocraticos da Idade Média e do Renascimento. Evitava-se o uso da expressão cruel.

Batatas - De todo modo, com a descoberta da batata sul-americana pelos peninsulares, entre o século 18 e o século 19, as mamães mais singelas descobriram que, com a adição de um purê do tubérculo à farinha e ao ovo, obtinham um resultado sensacional. Data de tal período, principalmente de Nápoles até a Calábria, na ponta do pé, e à Puglia, no calcanhar, a utilização dos gnocchi com os molhos opulentos à base de tomates e condimentos enriquecedores.

O sucesso, e a inevitável proliferação da maravilha através de todas as províncias da Itália, logo, evidentemente, causou uma multiplicidade paralela de batismos e de formatos inspirados nas pelotinhas originais.

Hoje existem os cavatelli ou cavatieddi nas plagas meridionais da nação; os malloreddus na ilha da Sardenha; os pisarei na Emília-Romagna; as troffie na Ligúria; e, por mais absurdo que pareça, os macaroni de sobremesa no Vêneto, ao Norte. Cada patisseiro, cada mestre-cuca, utiliza os seus ingredientes prediletos.

Mas para que não se grudem e não mereçam os epítetos de cretino ou imbecil, os gnocchi de verdade se perpetram, atualmente, com o máximo de batata na sua composição.

Demonstro, a seguir, a alquimia que aprendi com a minha bisavó Palma Fusinato; e mais uma outra, de ciambella, único gnocco gigantesco, de batata doce, que cometia Dona Martha, a mamãe de minha sogra. Obviamente, aos procedimentos essenciais se somam duas receitas que a família adora.

Os gnocchi - Para dez pessoas, em água fervente, cozinho 1,5 kg de batatas, sem as cascas. No momento em que se mostram macias, sem se romperem, retiro e lhes dou um choque térmico, em água geladinha. Esmago e reesmago, até que atinjam a textura de uma massa bem lisa e bem homogênea. Numa terrina de volume conveniente, agrego 150 g de farinha de trigo, um ovo e um toque de sal, o necessário para arredondar o sabor. Misturo e remisturo. Caso a massa pegue nos meus dedos, aos poucos, incorporo mais farinha, de maneira que possa moldá-la em tiras compridas, cilíndricas, de 2 cm de diâmetro. Com uma faca bem afiada, corto as tiras em pedaços de 2 cm de comprimento. Quando quero os meus gnocchi rugosos, por fora, delicadamente dou uma volta, em cada um, na superfície de um ralador de queijo – mas, em hipótese nenhuma, permito que se machuquem, ou se desmanchem. Para cozinhá-los, é suficiente mergulhá-los em água fervente, dez litros para cada quilo, até que as bolinhas, após nadarem, livres e desimpedidas, comecem a subir ao tipo do líquido.

A ciambella - Para dez pessoas, em água fervente, cozinho 1,5 kg de batatas doces, de preferência brancas, sem as cascas. No momento em que se mostram macias, sem se romperem, retiro e lhes dou um choque térmico, em água geladinha. Esmago e reesmago, até que atinjam a textura de uma massa bem lisa e bem homogênea. Numa terrina de volume conveniente, agrego 150 g de farinha de trigo, um ovo e um toque de sal, o necessário para arredondar o sabor. Misturo e remisturo. Caso a massa pegue nos meus dedos, aos poucos, incorporo mais farinha, de maneira que possa moldá-la em esferas de 10 cm de diâmetro. Com a maior ternura, recheio cada uma das esferas com duas colheres, de sopa, de carne moída, já no ponto, a gosto, ou de lingüiça idem, conforme a sugestão nesta página. Disponho as esferas numa assadeira pré-untada com azeite, banho com um pouco do molho respectivo e levo ao forno, manso, por dez minutos.

Receitas

Gnocchi da bisa Palminha
Ingredientes, para uma pessoa: 2 colheres, de sopa, de azeite de olivas. 1 colher, de sopa, cheia, de manteiga. 2 dentes de alho, trituradinhos. 120 g de carne moída, preferivelmente o patinho, sem gorduras e sem nervos. 4 colheres, de sopa, de vinho tinto, bem seco. Sal. Pimenta-do-reino. Noz moscada. 3 tomates, dos pelados, bem escorridos, grosseiramente picados. 1 colher de sopa, cheia, de alcaparras, bem lavadas. As folhinhas de um ramo, grande, de alecrim. 120 g de gnocchi, já cozidos. Queijo parmesão, ralado.

Modo de fazer: Numa frigideira, aqueço o azeite e derreto a manteiga. Em calor bem suave, amacio o alho trituradinho. Levanto a chama e refogo a carne, até que mude de cor. Despejo o vinho, levo à fervura. Rebaixo o calor. Tempero a carne com o sal, a pimenta-do-reino e a noz moscada. Viro e reviro. Incorporo os tomates, as alcaparras e o alecrim. Misturo e remisturo. Cozinho por cinco minutos. Agrego os gnocchi. Mexo e remexo, para que os gnocchi peguem o molho. Sirvo com o queijo parmesão, ralado, a gosto.

Ciambella da Dona Martha
Ingredientes, para uma pessoa: 1 gomo de lingüiça toscana fresca, apimentada, cerca de 120 g de peso. 2 colheres, de sopa, de azeite de olivas. 1 colher, de sopa, cheia, de manteiga. 2 dentes de alho, trituradinhos. 4 colheres, de sopa, de vinho branco, bem seco. Sal. Orégano. 1 xícara, de chá, de polpa peneirada de tomates. 120 g de massa de ciambella. Queijo parmesão, ralado.

Modo de fazer: Com uma faca bem afiada, retiro a pele da lingüiça e elimino todas as suas gorduras. Pico, grosseiramente, a carne da lingüiça. Numa frigideira, aqueço o azeite e derreto a manteiga. Em calor bem suave, amacio o alho. Levanto a chama e, rapidamente, douro a lingüiça. Despejo o vinho, levo à fervura. Rebaixo o calor. Tempero a lingüiça com um tico de sal e com o orégano, a gosto. Incorporo a polpa de tomates. Cozinho por cinco minutos. Recolho metade da lingüiça, com o mínimo de molho, e recheio a ciambella – que precisará ficar bem fechadinha. Numa terrina untadinha com mais um fio de azeite, disponho a ciambella. Cubro com o restante da linguiça e com o seu molho. Por cima, espalho o parmesão – e gratino, no forno.



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