Mário José Josino foi morto aos 30 anos por policiais militares;
valor atualizado da indenização gira em torno de R$ 1 milhão
Depois de 15 anos, a família do conferente Mário José Josino, agredido e morto por policiais militares na favela Naval, em Diadema, ainda não foi indenizada pelo Estado. Hoje, o valor atualizado gira em torno de R$ 1 milhão. Com sentença determinada pelo STJ (Supremo Tribunal de Justiça) em 2009, a dívida se transformou em precatório alimentar e entrou na infindável fila de pagamento.
"Até hoje não ganhei nada do Estado, embora tenham tirado a vida do meu filho que sempre trazia um sorriso no rosto", afirmou, resignada, Efigênia Guilhermina Josino, 75 anos, mãe do caçula de seis filhos homens - são dez no total - morto aos 30 anos pelo ex-policial militar Otávio Lourenço Gambra, o Rambo.
A indignação é compartilhada pelo promotor de Justiça José Carlos Guillen Blat, que ficou à frente das investigações. Na época, era o representante do Ministério Público na área criminal do Fórum de Diadema. "O que me causa espanto é que o Estado ainda não indenizou a família da vítima de um crime que o Brasil inteiro assistiu e se indignou. Foi um assassinato de grande repercussão", afirmou.
Há 15 anos, o caso da favela Naval virou escândalo nacional e internacional com exibição pela televisão, em horário nobre, de cenas de violência e morte protagonizadas por policiais militares do 24º Batalhão de Diadema.
O vídeo, produzido por cinegrafista freelancer, registrou as arbitrariedades cometidas nas madrugadas de 3, 5 e 7 de março, quando Josino foi baleado e morto com um tiro pelas costas. Os dez policiais militares envolvidos foram condenados pela Justiça (veja no quadro ao lado).
Apesar de todas as evidências e fatos devidamente comprovados, a indenização não foi paga aos familiares. "É lamentável o Estado de São Paulo, o mais rico do País, não ter cumprido sua obrigação legal", afirmou Eneas de Oliveira Matos, especialista em responsabilidade civil e doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo), advogado da família de Josino desde o início.
A ação de indenização contra o Estado interposta pelo advogado traz como beneficiários não só a mãe de Josino como os outros nove irmãos - aliás um dos primeiros casos reconhecidos pela Justiça que dá legitimidade também aos irmãos por dano moral.
O pedido inicial da indenização era de R$ 150 mil para Efigênia e R$ 50 mil para cada irmão, segundo Matos. O Estado recorreu nas três instâncias, mas perdeu em todas. "Sabe-se lá quando será realizado o pagamento, uma vez que a indenização entrou na famosa e famigerada lista de precatórios", criticou o advogado.
PECULIARIDADE
Para o representante legal da família de Josino, esse caso ainda traz peculiaridade na área jurídica. O artigo 37, parágrafo 6 da Constituição Federal aponta que o Estado sempre responderá por todos os danos, independentemente de responsabilidade. "Aqui a situação é ainda mais grave, porque a vítima foi morta por policiais militares que representam o Estado."
A PGE (Procuradoria-Geral do Estado) informou que "o precatório alimentar deverá ser pago assim que forem atendidos os que lhe precedem na ordem dos pagamentos". Desde 1º de janeiro de 2010, o Tribunal de Justiça de São Paulo é o responsável pelo pagamento, mediante recursos transferidos pelos municípios e Estado.
Em São Bernardo, reforma da casa parou com morte do filho
A reforma da casa no bairro Jordanópolis, em São Bernardo, parou em 7 de março de 1997, dia em que o conferente Mário José Josino foi morto pela Polícia Militar com um tiro nas costas. Ali ainda moram a mãe, Efigênia Guilhermina Josino, e o único filho da vítima, Kleiton, hoje com 24 anos.
Josino realizaria o sonho da mãe: construir um sobrado na frente do terreno e reformar a casa de Efigênia nos fundos. "Mas não deu tempo", lamentou a dona de casa nascida em Rio Piracicaba, em Minas Gerais, há 75 anos. Com 12, se casou com José Josino, morto há 30 anos. Na certidão de nascimento, a idade registrada é 83. "Meu pai colocou oito a mais para eu poder casar."
Em São Bernardo, mora há 60 anos. Dos dez filhos, seis homens e quatro mulheres, teve 22 netos e seis bisnetas - o primeiro homem chegará em maio. A mulher de Josino, Josélia, morreu há um ano.
Dona de memória invejável, Efigênia se emociona ao falar do filho caçula. E acredita que, onde estiver, hoje está feliz em ver a mãe na escola para aprender a ler e escrever, finalmente.
Do assassino do filho, o ex-soldado Otávio Lourenço Gamba, o Rambo, ela disse sentir dó. "Nunca mais vi nem tenho nada para falar para ele."
Promotor de Justiça ressalta a Lei de Tortura
O promotor de Justiça José Carlos Guillen Blat, hoje no fórum criminal da Barra Funda, em São Paulo, é autor do livro O caso da Favela Naval, em autoria com o ex-jornalista do Diário Sérgio Saraiva. Blat apontou avanços a partir do crime, que revelou como funcionava um batalhão entre as quatro paredes.
Entre os destaques está a criação e promulgação da Lei de Tortura (9.455) em 1997, após a divulgação do crime que chocou o País. Há ainda a mudança de postura da corporação, com a preservação da dignidade humana.
Blat disse que o livro não teve interesse comercial - a tiragem foi de 3.000 exemplares, apenas. "Registramos para a sociedade o então corporativismo policial existente em uma ação dantesca como foi esse caso", explicou o responsável peça ação penal condenatória. O promotor revelou ter sofrido várias retaliações e pressões, mas acredita que conseguiu fazer Justiça.
Hoje aqui é o céu, diz jovem da Naval
“Aqui hoje é o céu”, afirmou a operadora de caixa de supermercado, 21 anos, referindo-se à favela Naval, local onde nasceu e reside em Diadema, na divisa com São Bernardo. Na memória da jovem, que tinha apenas 6 anos quando Mário José Josino foi torturado e morto por policiais militares, há cenas de guerra entre polícia e bandido.
Sem revelar o nome, a operadora contou que, quando criança, deitava no chão do barraco com medo dos tiros. “Tinhámos de nos esconder”, afirmou a mãe solteira de uma menininha de 2 anos. Segundo a jovem, os criminosos – a maioria traficantes – foram embora do local.
Líder comunitário na favela Naval e presidente da Associação Filantrópica 25 de Julho, Carlos Antonio Rodrigues, o Tato, 48, compartilhou o mesmo relato. “Isso aqui era uma bárbarie. A realidade hoje é de um ambiente tranquilo”, garantiu o evangélico. Ele aguarda a entrega de um apartamento de dois dormitórios que integra o projeto de urbanização da área, que teve investimento de R$ 25,5 milhões de recursos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), do governo federal. Hoje há pelo menos 703 famílias vivendo no núcleo habitacional Naval.
“Tiroteio era a coisa mais normal do mundo por aqui”. relembra o líder comunitário. Tanto que, há 15 anos, na fatídica noite de 7 de março em que Josino foi morto, Tato ouviu os dois disparos enquanto carregava o carro para ir ao Litoral. “Segundos depois, passei pelo local e o Rambo (o ex-soldado Otávio Lourenço Gambra) apontou a arma para dentro do meu carro. Deu para sentir o cheiro da pólvora.”
A equipe do Diário circulou pela Naval na quinta-feira à tarde. Apesar do clima paz e amor cantado em verso e prosa pelos moradores, eles ainda demonstram tensão quando questionados sobre o crime que tornou a favela conhecida internacionalmente, em especial pelos representantes de direitos humanos. O receio, inclusive dos mais antigos e que vivenciaram a repercussão do caso, começa com a não identificação.
Alguns, quando abordados, deixaram o local. “Lembro-me quando garrafas plásticas com gelo seco eram arremessadas sobre o barraco. O toque de recolher vinha tanto da polícia quanto dos bandidos”, contou a mãe de seis filhos nascida na favela e hoje com 39 anos.
Os barracos de madeira foram quase todos derrubados pela Prefeitura. Em julho de 2010, o governo entregou 252 unidades. Em frente ao cruzamento do inesquecível crime, que é ponto de descarte irregular de lixo e móveis velhos, creche deve ser construída para 150 crianças entre 0 e 3 anos.
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