Cultura & Lazer Titulo
'Casa de Boneca' flui bem
Mauro Fernando
Do Diário do Grande ABC
07/06/2002 | 18:45
Compartilhar notícia


Nora (Ana Paula Arósio) percebe, em determinado instante, que sempre foi alegre, mas não feliz. É a hora da reviravolta. Essa trajetória – que não é meramente pessoal, mas combinada a fatores sociais – é o que se presencia no Teatro Faap, em São Paulo, onde está em cartaz, até 7 de julho, Casa de Boneca, peça de Henrik Ibsen (1828-1905) dirigida por Aderbal Freire-Filho.

A transformação de Nora é perceptível também por meio da casa de bonecas estrategicamente situada na frente do palco. Elemento significativo, o brinquedo é levado para o fundo do palco e, no final, sai de cena. É quando a mulher criada para ser um bibelô do marido decide transgredir e exercer o direito de ter vontade própria.

Essa atitude, em uma leitura apressada, poderia ser um manifesto feminista, mas ela perde essa conotação graças ao tratamento antipanfletário do dramaturgo e do cuidado artístico do diretor, que afastam qualquer perspectiva didática.

A montagem acentua o que há de mais atual no texto, traduzido por Karl Erik Schollhammer, como a superficialidade típica da burguesinha mimada. Nora, a bonequinha fútil, adora ir às compras. A independente Cristine (Silvia Buarque) faz o contraponto.

O jogo de aparências sociais é outra característica dos nossos dias. Fraudes de qualquer gênero, não necessariamente financeiras, mas sempre ligadas à falta de ética, são admissíveis desde que encobertas. E dissimulações são necessárias para o perfeito funcionamento dessa engrenagem comandada pela hipocrisia.

Isso fica mais claro quando o agiota Krogstad (Floriano Peixoto) desiste de chantagear Nora, que falsificou a assinatura do pai a fim de obter o empréstimo que salvaria a vida de Torwald (Marcos Winter), seu marido. Para este, afastado o perigo da opinião pública, tudo está em ordem. Se amigos, parentes e vizinhos desconhecem a falta, ela está perdoada. Nora prefere mudar de time.

O belo cenário, do português José Manuel Castanheira, foge do realismo puro. Há nas paredes da casa a caligrafia do dramaturgo e poucos elementos de cena, nenhum colocado de forma gratuita (mesa, cadeiras, relógio de parede, árvore de Natal, a casa de bonecas).

Esse cenário sugere uma transição do teatro realista, do qual Ibsen é pioneiro, para o contemporâneo. E remete às raízes do embate entre a pintura figurativa para a abstrata – o impressionismo, por exemplo –, que datam do final do século XIX, época em que Casa de Boneca estreou com polêmica. Por intermédio da metáfora da mudança dos tempos, por mais paradoxal que pareça, esse dado confirma a atualidade da peça.

Outra questão é a geometria da cena, as diagonais que os atores formam com a disposição dos móveis que são constantemente trocados de lugar. Esse recurso conduz a imaginação à precisão de cálculos matemáticos, trabalho reforçado pela luz de Maneco Quinderé. Há uma ligação com a regrada frieza de Torwald, recém-promovido a um alto cargo de um banco.

É uma frieza e um autoritarismo que se nota também nos relacionamentos pessoais. Exemplo: a cena em que Nora ensaia a tarantela com Torwald. Ela demonstra grande vivacidade, depois engessada por ele.

Dona de beleza hipnótica, o que não é novidade, Ana Paula revela-se boa atriz. Para isso contribui a generosidade do elenco, que atua não em função da protagonista, mas sem aquela vaidade exacerbada e, muitas vezes, destrutiva. Assim, sem que ninguém se preocupe em roubar cenas indevidamente, o jogo flui.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;