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Doce horizonte

A menina transita pela praia e pela adolescência...

Rodolfo de Souza
02/06/2016 | 07:00
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A menina transita pela praia e pela adolescência que, não demora, tem vencido seu prazo de validade. Carrega uma espécie de sacola dependurada nos ombros e nesta, feito bicho marsupial, leva uma criança, provavelmente o filho. Ostenta o pequeno como um troféu que recebera desfilando simpatia e graça pela comunidade.

É só uma menina a carregar um ser no limiar da existência, que de longe o velho observa. Este que se encontra sentado no seu banco à sombra das árvores que nasceram ali, naquele recanto da praia, só para lhe dar sombra farta enquanto espia a passagem do tempo, bem diante de seus olhos.

Na verdade, parece não observar nada. É indiferente, alheio ao mundo que o cerca. Somente as ondas do mar são capazes de fazer brilhar seus olhos desinteressados. Talvez a menina com o bebê o tirasse da letargia. Quem sabe um gesto de comiseração... Mas ela não o vê. É só um velho sentado no seu banco, motivo suficiente para que seu olhar passe distraído por ele, sem lhe dedicar um fiapo de atenção. Por certo que incomoda a mente observadora e ainda verde da adolescente este sentimento que começa a amolar as pessoas que atingem certa idade. Gente que não lhe desperta interesse algum por causa das marcas que o passar dos anos começa a imprimir nos rostos e nos corpos. É a aborrecida natureza humana que, ali na praia, começa a esfregar na cara jovem a realidade de um futuro que não demora a chegar.

O homem sorri um sorriso precário, como se adivinhasse o que vai pela cabeça da garota.

Sorri também quando um simpatizante, por ventura, lhe acena. No semblante, o traço de desilusão com a vida é talvez um sinal de expectativa diante do fim que possivelmente vislumbre no horizonte do mar.

Não se importa com isso. Sua existência não foi mesmo de grandes conquistas, afetivas e monetárias, quase sempre uma decorrente da outra.

O velho se perde em seus pensamentos e, por vezes, se esquece do sol, do calor e da praia com seu ir e vir de pessoas seminuas a exibir corpos bonitos e corpos feios, sem o menor pudor. Tudo ali é permitido, tudo ali é alegria.

Alguém com um carro, cujo interior é quase que totalmente tomado por aparelhos de som, passa fazendo um barulho dos diabos que não abala o velho. Ele permanece com o olhar distante. Acostumara-se ao mau gosto em todas as suas nuanças, no decorrer de sua vida. Embora, o lado bom desta, volta e meia, lhe presenteie com uma cerveja gelada. Esta que, de repente, vem parar em suas mãos, como que caída de uma das árvores. Novamente ele sorri e movimenta levemente a cabeça para agradecer. É o seu jeito. Todos sabem.

Mas em dado momento, cansado da cerveja e de tudo que há, suspira e sente uma vontade incontrolável de se deitar. Nada mais à sua volta é dotado de um só ingrediente que venha a lhe despertar o interesse. Deseja, única e exclusivamente, repousar. Tudo pelo qual clama o seu corpo e o seu espírito é aquela cama humilde que jaz ali naquele quartinho da mesma forma pobre que já aspira solidão.

O catre, com seu rangido, é companhia todas as vezes em que se deita para o descanso merecido. Só que agora, acompanha-o também uma dor profunda no peito. Algo incompreensível, lento, bem fundo... Palpável prenúncio de um novo amanhã.

* Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com. 




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