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A poção mágica
Rodolfo de Souza
01/11/2020 | 07:00
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Assistimos agora a um fenômeno nunca antes imaginado. Vimos que, em tempos de pandemia, ganhou espaço na mente humana o sonho pela liberdade, perdida desde que o sinistro se apossou da vida com a nítida intenção de dar cabo dela. Aliás, as pessoas nunca tiveram sonhos tão singelos durante sua existência. Casa própria, carro, viagens, fama de artista, são alguns dos itens que embalaram muita gente em devaneios solitários, íntimos de verdade. Joias escondidas lá no fundo do baú que cada um guardava dentro de si, só para serem apreciadas e novamente trancadas a sete chaves.

E ninguém imaginou sonhar um dia com algo tão peculiar e medicinal quanto uma vacina. Isso mesmo! Uma vacina! Poção mágica que concederá às pessoas o direito à liberdade de ir e vir, como faziam antes, em época em que pandemia era termo que não fazia parte das rodas de conversa nem era ouvido nos meios de comunicação, ou em parte alguma. Mas a palavra se materializou neste sombrio 2020 para escancarar às populações a sua fragilidade, o nada que representam enquanto organismos que são.

Veio para mostrar que o microcosmo pode ser mais assustador do que o macrocosmo, que o invisível, criado sabe-se lá como e por que razão, tem o poder de matar pela doença ou pela fome, uma vez que a economia definha, com os negócios paralisados. E o mundo, como é de conhecimento geral, deixa de girar, com esta engrenagem emperrada.

Mas os governos se apressaram em correr atrás da vacina, milagre que deixará os laboratórios com a promessa de libertar o povo, de permitir que volte a viver sem máscara em qualquer parte, de abraçar, de correr aos estádios, de ir aos bares e... Claro que ela vem devagar. Há muita pressa, por isso a paciência se esgota ante a lentidão das fases de testes. “É preciso que venha logo! Não suportamos mais!” – é o grito que já começa a escapar das gargantas afoitas, aquelas que se contiveram e que ainda se encontram na clausura dos seus lares, com medo até da própria sombra.

Todavia, não nos preocupemos, caríssimos, agora que estamos na reta final! Mas o terror é presença constante nas mentes mais cuidadosas, sobretudo, quando ouvem falar da segunda onda batendo à porta de alguns países. Claro que, dentre as populações, há aquele segmento que duvida e bota à prova o perigo iminente. Alguns morrem, outros sobrevivem e experimentam do amargo sabor do arrependimento.

Mas não nos preocupemos, a vacina está vindo aí. Mesmo que se saiba que o problema não está na sua eficácia e sim na sua procedência. Se vier do grande império do Norte, será bem aceita pela horda que ora ocupa o bureau central.

Mas parece que ela vem mesmo do grande império do Oriente – dirá alguém – daquela potência que se contrapõe aos anseios de Tio Sam, razão de sobra para que não lhe tenha apreço pequena parcela da sociedade deste vasto e rico sertão. Seu povo, na verdade a maioria, bem que deseja a poção mágica, venha ela de onde vier. Entretanto, não lhe cabe decidir nada. Compete-lhe somente aguardar e torcer para que venha o produto e em quantidade suficiente para inocular todo mundo.

Andou até meio assustado, esse povo, ao ouvir declaração recente do poder, que ameaçava proibir a entrada no País da vacina produzida lá em terras distantes. Parece, contudo, que o cão banguela só latiu, sem qualquer intenção de morder. Fez alarde, o animal, com o intuito de voltar os olhos do povo para mais um dilema, talvez por não suportar a ideia de ver a poção mágica finalmente deixar os tubos de ensaio e ganhar o mundo. Em especial, este mundão de meu Deus, lugar em que a pobreza de espírito fez morada, com a promessa de não deixá-lo tão cedo.</CW> 




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