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ARTIGO - Da indevida investigação criminal tributária
Por Fernando José da Costa*
07/11/2019 | 07:00
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Tema dos mais discutidos atualmente é este que trata do momento em que se pode ‘apurar’, por meio de inquérito policial, a prática de crimes tributários, se antes ou depois da constituição definitiva do crédito tributário.

No passado, mesmo antes do lançamento tributário em definitivo na esfera administrativa, permitia-se a apuração de crime tributário instaurando inquérito policial, inquirindo o contribuinte e realizando todas as demais diligências investigativas. Todavia, a partir de 10 de dezembro de 2003, graças ao habeas corpus número 81.611, sustentado oralmente por meu amado pai, Paulo José da Costa Júnior, no Pleno do Supremo Tribunal Federal, o Supremo mudou seu posicionamento, passando a não mais permitir que se apurasse crime tributário enquanto ainda se discutisse na esfera administrativa este lançamento tributário. Isto porque, em apertada síntese, segundo sustentado por meu pai, entendeu-se não ser possível discutir crime tributário sem a prévia definição de uma dívida tributária. Mutatis mutandi, seria como permitir investigar alguém por um furto, sem a comprovação da subtração do bem.

Em 1996 entrou em vigor a lei número 9.430 que, em seu artigo 83 (com redação dada pela lei número 12.350 de 2010), determinou que uma representação fiscal tributária para fins penais, relacionada a crimes previstos na lei número 8.137 e nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal, só será encaminhada ao Ministério Público após decisão final na esfera administrativa.

Em razão desta previsão legal, o Ministério Público entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – Adin número 1.571, julgada em 12 de fevereiro de 2009 pelo STF que, entendendo pela constitucionalidade da norma, esclareceu ser possível o Ministério Público atuar independentemente do envio da representação fiscal enviada pelo Fisco.

Todavia, com o reflexo do HC 81.611 e após o julgamento da Adin 1.571, mais precisamente em 11 de dezembro de 2009, o mesmo STF editou a Súmula Vinculante nümero 24, com a seguinte redação: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.

Foram várias as leis que trataram do tema, deixando-o ainda mais complexo. Em 2011, a lei número 12.382/11, em seu artigo 6º, que acrescentou os parágrafos 1º ao 5º do mencionado artigo 83, da lei número 9.430/96, mantendo, contudo, o entendimento de que a representação fiscal para fins penais “será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário”.

Assim, claro está não ser possível iniciar um processo criminal antes de definida na esfera administrativa uma dívida tributária. A lei número 12.382, que acrescentou os parágrafos acima mencionados, trouxe importantes novidades ao artigo 83: em um deles, determina a extinção de punibilidade do crime tributário e contra a Previdência Social, se o contribuinte pagar o tributo devido antes do recebimento da denúncia criminal; em outro, a suspensão do inquérito policial se ele parcelar o tributo, corroborando a tese de falta de justa causa para dar início a um processo criminal.

Todavia, a discussão que motivou a escrita deste artigo está condicionada à possibilidade ou não de se iniciar uma “investigação policial” antes do lançamento tributário definitivo.

Ora, se a Súmula número 24 deixa claro inexistir justa causa para dar início a um processo penal e a lei veda o envio pelo Fisco de relatório fiscal para fins penais antes de encerrada discussão administrativa sobre o tributo devido, por que haveria justa causa para dar início a um inquérito policial?

Isto porque, pela mesma fundamentação que o Supremo Tribunal Federal em 2003, quando decidiu não ser possível acusar alguém por crime tributário antes da definição do tributo devido, sedimentada pela supracitada Súmula, bem como pela determinação legal de 1996 e de 2011 ao Fisco, de só enviar a representação fiscal para fins penais após o lançamento definitivo do tributo, ou ainda pelo julgamento da Adin 157, que não considerou tal dispositivo inconstitucional, não há dúvida de que só há “justa causa” para investigar um eventual crime tributário quando houver um lançamento tributário definitivo na esfera administrativa. Caso contrário, estaríamos sujeitos a amanhã investigar, processar e até condenar alguém por crime tributário que, futuramente, poderá ter seu lançamento tributário anulado, o que, data venia, caracterizaria uma verdadeira aberração jurídica.

Importante mencionar, ainda, o julgamento pela 2ª Turma do STF do HC 139.151, de 16 de abril de 2018, que teve a ministra Rosa Weber como relatora. Naquela oportunidade, se permitiu investigação criminal tributária antes da constituição do crédito tributário, sem ofensa à Súmula número 24, apenas e tão somente naquele caso específico. Isto porque se investigavam outros crimes, não protegidos por referida Súmula. Tal julgado só reforça a falta de justa causa para se investigar um crime tributário antes da definição na esfera administrativa do tributo devido.

Pelo exposto, já se pacificou o não início de ação criminal antes do lançamento tributário definitivo na esfera administrativa. Todavia, a discussão – que justificou a escrita deste artigo – paira no não cumprimento pelo Fisco das mencionadas leis e súmula, já que, juntamente ao auto de infração, o fiscal, via de regra, está redigindo um ‘relatório fiscal para fins penais’ enviado ao Ministério Público que, por sua vez, determinará à autoridade policial, via despacho padrão, a instauração de inquérito policial.

Com isto temos um eventual contribuinte sofrendo todos os constrangimentos de um inquérito policial, como, por exemplo, ter antecedentes policiais, ser averiguado, ser intimado a prestar depoimento, ter que contratar um advogado, ter uma prisão temporária ou preventiva decretada, sofrer busca e apreensão, condução coercitiva etc, sem a decisão definitiva pelo Fisco de sua dívida tributária. Que fique bem claro: não há justa causa para tal investigação. Isto é muito grave e precisa ser sanado.

Sobre o tema, temos acertados precedentes do Supremo que vedam tal investigação policial quando o único crime apurado for o tributário (Pet-QO 3.593, AP 422-QO, HC 89902, HC 88657, HC 84.345, HC 81.321,HC 88.994, HC 93.209, HC 84.925), entendendo inexistir justa causa nesta prematura investigação policial até a definição do tributo devido.

Temos também aqueles casos nos quais o fiscal, com o fito de obstruir esta referida falta de justa causa para iniciar investigação policial, sem qualquer conhecimento técnico e fundamentação, menciona em seu relatório fiscal, para fins penais, a prática de outros crimes que não os tributários, como associação criminosa, lavagem de capitais e falsidade documental. Tal relatório igualmente não exclui a falta de justa causa para investigar criminalmente alguém até o lançamento tributário definitivo na esfera administrativa.

Vale ainda lembrar que mesmo após o lançamento definitivo do tributo, não há configuração automática da prática de crime tributário. O ilícito tributário é diverso do ilícito criminal tributário. Isto porque no criminal, diversamente do tributário, exige-se uma responsabilidade subjetiva do agente. Ou seja, em primeiro plano é necessário identificar qual a pessoa física que praticou esta conduta e, após tal identificação, deve ser analisado se foi preenchida a teoria tripartida do crime, qual seja, se há fato típico, antijurídico e culpável.

Em palavras menos técnicas: se faltar um destes requisitos, como a culpabilidade, não haverá crime. Exemplificando, mesmo que o Fisco determine a dívida de um tributo, se o contribuinte não o recolheu por entender que tal tributo não era devido (culpabilidade), embasado em boa argumentação, ele não agiu com o ‘dolo’. Logo, terá praticado o ilícito tributário, mas não terá praticado crime tributário.

Situação semelhante ocorre quando não se identifica qual a pessoa física que praticou aquela conduta. Neste caso, tem-se apenas o ilícito tributário.

Por fim, concluo informando que nos crimes contra a ordem tributária e contra a Previdência Social, o pagamento integral do tributo – incluindo acessórios, como previsto na lei número 13.282 – antes do recebimento da denúncia criminal extingue a punibilidade, e seu parcelamento suspende a persecução penal e a prescrição. Após o pagamento integral é igualmente extinta a punibilidade do agente.

*Fernando José da Costa é advogado criminalista, mestre e doutor em direito penal pela USP, doutor em direito penal pela Itália, autor de diversos livros jurídicos e professor em direito penal e processo penal. 




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