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A assustadora passagem do tempo

Minha prima resolveu dar uma festa para comemorar seu aniversário e convidou-me, feliz, para a celebração...

Rodolfo de Souza
21/12/2014 | 07:00
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Minha prima resolveu dar uma festa para comemorar seu aniversário e convidou-me, feliz, para a celebração. Prima que eu vi nascer! Logicamente que “vi nascer” é força de expressão antiga de que me faço valer, aqui neste espaço, e que muito me auxilia quando pretendo reforçar a ideia do tempo transcorrido desde que fiquei sabendo de seu nascimento. Diga-se de passagem, nem idade eu tinha para discernir acerca do evento. De qualquer forma, assustei-me ao ouvi-la dizer que comemorará cinquenta primaveras. E como isso tem causado incômodo neste peito cansado! Tem me espantado de verdade. Espanto, termo que, aliás, melhor se encaixa neste contexto, uma vez que tenho pensado com seriedade sobre o assunto todas as vezes em que, numa roda de bate-papo, a conversa gira em torno da idade madura de parentes próximos, garotada que conheci bebê. Difícil, então, conceber coroa a menina que eu me habituei a enxergar menina.

Mas o tempo é implacável! Persegue o ser desde que este inicia sua campanha por esta terra, que consiste em crescer, estudar (às vezes), trabalhar, se arranjar com alguém e constituir família. Terra que, é bom lembrar, há de lhe devorar os olhos que veem com desconforto a impotência diante da verdadeira lei dos homens, ou para eles.

Ainda ontem no mercado, enquanto procurava caixa com fila menor, tive a confirmação da crueldade impingida a nós seres humanos pelo tempo que nos faz desabar feito reboco de barro em chuva forte. Fui, pois, interceptado por um desconhecido desaforado, esbanjando simpatia e solicitude, que me indicou um caixa vazio. Era atendimento exclusivo para pessoas que, de alguma forma, encontram-se em desvantagem física, seja velho, deficiente, grávida, ou carregando criança. O diabo do sujeito teria insinuado que minhas brancas madeixas me proporcionariam livre acesso ao tal caixa. Comecei novamente a sentir o acre sabor que experimentei quando começaram a me chamar de senhor, anos antes. Esperneei, lutei e relutei contra o desrespeito disfarçado de respeito, utilizado pela maior parte das pessoas. Sucumbi, porém, ao título. Acabei por me acostumar a ele, sobretudo, por considerar que senhor pode ser sinônimo de importante, grande, sei lá.

Noutra ocasião, quase dei na cara de um fulano que, no ônibus, insistiu para que eu ocupasse o acento que gentilmente me oferecia. Aquele banco, cujas figuras logo acima, sugerem que o passageiro ali sentado, enquanto ainda jovem, tem o dever de desocupá-lo na presença de um velho. Levantou-se, pois, o doce rapaz para que eu me instalasse confortavelmente no banco ainda quente. Até a temperatura fora pensada para me proporcionar bem estar. Safado!

— Estou longe dos sessenta, generosa, delicada, e repugnante criatura! Por que teimas em me oferecer o lugar que a duras penas conquistaste? Senta-te e cala-te.

— Mas eu insisto, ó vaidoso ancião!

— Vá insistir no raio que o parta!

É isso que dá. Antigamente as pessoas não passavam por tamanho constrangimento, simplesmente porque permaneciam em curta temporada neste palco. Só até contracenarem com uma tuberculose tinhosa, uma maleitazinha febril e outros males que as varriam deste plano bem antes de atingirem os sessenta. Logo, não necessitavam de acento privativo para suas bundas murchas, nas carroças que rodavam pelas cidades. Tampouco era comum clube da terceira idade. Não passavam nem da segunda...

Mas por compaixão e consolação, a sociedade, esbanjando hipocrisia, achou por bem chamar de melhor idade o estado de velhice absoluta.

Perdoe a ignorância deste escritor, ó indivíduo que convida educadamente para uma contradança a bela senhora que ocupa a cadeira da esquerda e que resolveu sentar porque a artrose não lhe permite permanecer por muito tempo de pé.

Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com. 




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