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As cartas não mentem, mas às vezes se enganam
Por Danilo Angrimani
Do Diário do Grande ABC
24/07/2005 | 07:59
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"Todas as misérias são interiores e causadas por nós mesmos. Erradamente, julgamos que elas vêm de fora."
(Anatole France, escritor francês, 1844-1924)

O Diário resolveu testar a credibilidade das cartomantes. Enviou um repórter com nome fictício (João Carlos Gonçalves) e uma história comovente (abandonado pela mulher há cinco anos, desempregado, sozinho, vivendo de favor na casa da mãe). O resultado foi surpreendente para aqueles que acreditam nos insondáveis mistérios do ocultismo. Nenhuma delas descobriu a farsa. As três embarcaram na história. E pior: criaram teorias místicas ou conspiratórias para explicar o que tinha ocorrido. Uma suposta cigana de Santo André pediu R$ 350 para "mandar ver". Ou seja, complicar a vida da inexistente ex-esposa traidora. Outra cartomante, de São Caetano, queria R$ 300 para "desfazer a amarração". Acompanhe o relato do repórter.

Na saída da estação de trem de Santo André, ganho um folheto de propaganda da Cigana Mayara, com a informação de que ela "faz e desfaz macumba, bruxarias, feitiços africanos" e afasta "encostos de entidades ruins, inveja, mau olhado e separação". Vou até a casa que fica na avenida Industrial, vizinha de uma igreja evangélica.

A cigana só atende com hora marcada. Cada consulta sai por R$ 20. Marcamos para o dia seguinte. Uma quarta-feira. O problema é que no dia marcado a Mayara não aparece. Dá o bolo no cliente.

Retorno no outro dia. Uma assistente abre a porta e me manda aguardar em uma espécie de sala de espera, que tem a TV ligada em um programa infantil. Uma criança deitada no sofá mexe no controle remoto e muda de canais. Na parede, um tapete com divindades hindus serve de decoração.

Cinco minutos depois, a cigana Mayara aparece e me manda entrar em uma saleta. A suposta cigana pega as minhas mãos e risca as palmas com uma caneta preta.

Ela vê uma "separação", que teria coincidido com o momento do "desemprego". Finjo ter ficado surpreso com a capacidade dela de adivinhar e confirmo a história, que teria ocorrido há cinco anos. "Tem gente te puxando pra trás, João Carlos, acabando com você", ela diagnostica.

Mayara pega um baralho e pede para eu cortar. Abre as cartas na mesa e segue o seguinte diálogo:

– Tem um negro, que é bicha e macumbeiro. Tem também uma mulher evangélica, de saia longa e cabelo preso num coque. Esses dois e uma outra mulher amarraram tua vida, João Carlos. Cê tá me entendendo?

– Estou entendendo. Foi minha ex-mulher, junto com essas duas pessoas.

– Você tem problema na Justiça?

– Não.

– Você está fazendo algum bico?

– Não.

– Você vai ter que fazer uma limpeza, uma purificação pra tirar isso tudo de você. Cê tá me entendendo?

– Eu queria fazer alguma coisa pra ela, cigana. Queria acabar com ela. Os vizinhos me disseram que ela está de carro novo, numa boa. E eu tô aqui (simula um início de choro), numa pior.

– Ela está bem, viu. Ela está rindo de você nesse momento. Ela está por cima, rindo de você. Cê tá me entendendo? Ela fez pra você. Vai precisar disso aqui ó: R$ 170 pra fazer uma limpeza. Vou te ajudar. Vou arrumar emprego e uma outra pessoa pra'ocê. Hoje você está sozinho, abandonado, amargurado. Tem que pensar no bem e não no mal.

– Eu sei que não é pra pensar no mal, mesmo assim queria acabar com a raça dela, cigana.

– Mandar o feitiço de volta, né meu filho.

– Isso.

– Fica R$ 350. Mas é pra botar pra quebrar, viu. Guarda esses papel (sic) aí (com os preços dos feitiços). Qualquer coisa você me procura. Não se preocupa não, que o que é seu a gente vai resolver. Tá entendendo?

– Estou entendendo.

Disk Magia – Em São Caetano, foi difícil achar uma vidente. A reportagem parou pessoas na rua, olhou os postes, os quadros de avisos e nada. Ninguém parecia conhecer uma. A solução estava em uma casa de umbanda. O proprietário me entregou uma cópia xerográfica com dois telefones de contato da "Disk Magia Cigana", "lê-se cartas ciganas, búzios e tarô".

Liguei para o celular. A cigana em pessoa atendeu.

- Gostaria de fazer uma consulta, senhora...

– Você quer vir aqui na minha casa?

– Quero.

Perguntei o preço. Cinqüenta reais. Pechinchei e ela baixou para R$ 30.

Ela me deu o endereço de uma rua no bairro Fundação. Meia hora mais tarde, estava diante de um quarto e cozinha, situado nos fundos de outro imóvel. De calça comprida preta risca de giz, blusa vermelha generosamente decotada, sapato de salto alto e bico fino, a cigana Alessandra, uma mulher morena de uns 30 anos, preparava o café.

O lugar era pequeno, apertado. Da cozinha, se via a cama da cigana no outro cômodo. Enquanto servia o café, ela perguntou como ia a minha vida. Contei a história do desemprego e do abandono da ex-mulher.

Sentamos em uma mesa circular minúscula. A TV não foi desligada e transmitia a sessão da tarde. De vez em quando, em meio à consulta, ouvia-se a voz de uma criança gritando no filme: "É o espantalho!"

Ela tirou os sapatos, puxou um cigarro do maço e disse que ia fumar bastante, porque a entidade cigana invisível, que estaria ao lado dela naquele momento, queria que fumasse.

Haveria também, segundo ela, um anjo da guarda ali por perto. O anjo certamente estaria incomodado com tanta nicotina entrando pelos pulmões da cigana. Ela começou a jogar fumaça na minha cara, enquanto pediu para eu cortar o baralho "em três metades (sic)".

Fiz o que ela pediu. A primeira carta que apareceu foi a resposta para todos os meus males.

"Alguém fez uma amarração para você", ela revelou. "Isso não foi agora, não. É coisa de cinco anos."

"Justamente quando eu me separei", falei. "Foi a desgraçada da minha ex-mulher."

– Você precisa desamarrar isso, senão as coisas não vão dar certo em sua vida. Foi por isso que você perdeu o emprego e está sozinho.

– E quanto custa, cigana, para fazer essa desamarração?

– Trezentos reais. É barato. Não acredite em feitiço de mil, dois mil reais. Magia muito cara não funciona.

Ela disse que faria um pacote com velas, vários produtos antifeitiço e que jogaria tudo em uma cachoeira. Tirou mais cartas e avisou que tinha uma "boa notícia" para mim: "Sua ex-mulher está traindo o atual marido dela."

Meio sufocado e tossindo por causa da fumaça do cigarro, gritei: "Bem feito".

No meio da história, tocou o telefone celular e ela interrompeu a consulta. Era alguém que tinha encomendado um "banho espiritual".

Ela desligou o celular e me passou uma "receita" de banhos "abre caminho" à base de sal grosso ("tirar o feitiço"), canela ("chamar dinheiro") e alecrim ("alegria"). Disse que me apresentaria uma mulher "de 32 anos", "muito rica", que estava "querendo um homem para casar". "Ela tem casa, carro, vive sozinha e está atrás de um homem. Eu posso apresentá-la. Vamos sair nós três. Tenho certeza que ela vai gostar de você." Mas, antes, era bom fazer "a desamarração".

"Ama a verdade, mas perdoa o erro"

(Voltaire, escritor francês, 1694-1778).




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