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Mamãe Clory morre aos 94 anos
Elaine Granconato
Do Diário do Grande ABC
22/11/2011 | 07:00
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Fernando Nonato/DGABC


O Grande ABC perdeu ontem um dos nomes mais importantes da assistência social e de exemplo de ser humano. Morreu Clory Fagundes Marques, 94 anos, a Mamãe Clory, como era carinhosamente chamada em São Bernardo, vítima de câncer no estômago e complicações gastrointestinais. Internada desde sexta-feira no Hospital Municipal Maria Braido, em São Caetano, a guerreira de Alegrete, no Rio Grande do Sul, que nunca se abateu diante dos embates da vida, desta vez não resistiu e partiu às 4h30. Aqui deixou pelo menos 1.000 filhos entre biológicos e adotivos, além de cerca de 300 netos, 60 bisnetos e 32 tataranetos. O prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho, decretou luto oficial de três dias pela perda.

Desde as 13h30 de ontem, o corpo de Mamãe Clory é velado no Teatro Cacilda Becker, no Paço Municipal. Hoje, às 9h, ocorre o cortejo em carro aberto do Corpo de Bombeiros até o Cemitério da Colina, em São Bernardo. O enterro está previsto para as 10h. Entre as homenagens, dezenas de coroas dedicadas à fundadora da Associação Cristã Verdade e Luz, popularmente tratado como Lar da Mamãe Clory (veja reportagem nesta página).

"Ela é nossa mãe", disse Viviane Borges, 29, com lágrimas nos olhos e o segundo filho na barriga. Com 5 anos, Viviane ficou orfã e encontrou nos braços de Mamãe Clory o colo. No lar permaneceu até os 18, quando foi tocar a vida com as próprias pernas. Além de Pietro, que chega depois do Natal, Gustavo, 7, engrossa a lista dos cerca de 300 netos da matriarca.

Entre as palavras de encorajamento de Mamãe Clory, segundo depoimentos dos inúmeros filhos, familiares e amigos à equipe do Diário, durante o velório, ontem, força, alegria, motivação e perseverança. "Respeito ao próximo foi uma das coisas que aprendi com ela", afirmou Valmir Pereira Marques, 48, um dos 17 filhos registrados oficialmente pelo casal Clory e Orestes Vieira Marques - morto em outubro de 1994.

Filhos biológicos foram três, mais 87 adotados com a alma e o coração ainda em Andradina, quando veio para São Bernardo em 1969. Houve necessidade de fretar um ônibus para o transporte da família. Vale ressaltar que Clory fazia questão de não diferenciá-los.

Primogênito, Joelson Fagundes Marques, 67, advogado aposentado, é testemunha fiel do carinho de Mamãe Clory por todos os filhos, sem distinção. "Ela sempre deu muito amor para todos no lar e ensinou a importância do estudo na vida de cada um", ressaltou Joelson, com lágrimas nos olhos. Hoje, são médicos, engenheiros, advogados e professores que seguiram as recomendações da eterna Mamãe Clory, que a todos recebia em pé e com sorriso aberto no rosto. Em um quartinho no lar, deitava-se à 1h. Às 5h, já estava em pé para fazer o café para os inúmeros filhos. 

Trabalho assistencial vai continuar

O incansável trabalho assistencial que Mamãe Clory realizava na Associação Cristã Verdade e Luz não deve parar. São 180 crianças de zero a 4 anos, dez idosos internados no asilo, além de inúmeras pessoas que passam pelos cursos de gestante e capacitação e que ficaram órfãs ontem. Com a morte da fundadora, os tempos devem ficar mais difíceis, mas a intenção de seus "filhos" é continuar a estender a mão a quem precisa.

"Será mais complicado para todos nós, já que perdemos nossa referência, nosso ícone. Muitas das pessoas que doavam dinheiro, alimentos ou roupas vinham por causa da presença dela. Mas tenho certeza que conseguiremos continuar seu projeto, assim como Mamãe Clory queria", afirma o presidente da instituição, César Luiz Fagundes Marques. Somente em São Bernardo são 42 anos de trabalho.

Fundado em 1969, o Lar da Mamãe Clory, como ficou conhecida a associação, mantém gratuitamente os serviços de creche, centro de juventude e asilo, além de cursos para gestantes e de capacitação, como corte e costura, usina de reciclagem, panificação e serviços gráficos. A estimativa é de que 3.000 pessoas já passaram pela associação.

A vice-presidente da entidade, Soely Gozzi, não tem dúvidas de que a mãe estará ao lado dos filhos e os ajudará a levar o trabalho adiante. "Ela nos ensinou que viver é reagir. Vamos seguir o caminho que ela indicou, dentro da caridade, incansavelmente."

INSTITUIÇÃO

Mantida principalmente pela verba levantada pela padaria, gráfica, sebo, brechó, venda de móveis usados e usina de reciclagem, a instituição tem custo mensal de R$ 80 mil. O setor produtivo corresponde por 80% desse montante. Os outros 20% são recolhidos por meio de doações em dinheiro, festas e bingos. Não há subsídio de verbas federal, estadual ou municipal.  (Angela Martins)

Uma vida dedicada à caridade e ao amor às crianças

A gaúcha Clory Fagundes Marques começou sua jornada de caridade uma semana após o casamento com o funcionário público Orestes Vieira Marques, falecido há 20 anos. Uma recém-nascida foi abandonada na porta de sua casa, em Ponta Porã, no Mato Grosso. Ela seria a primeira de seus vários filhos. De sangue foram três. De coração, milhares.

Com a mudança para a cidade de Andradina, Interior de São Paulo, outras crianças foram aparecendo na vida da costureira, que capitaneou dois restaurantes. "Era uma cidade muito pequena, que não dava condições para a molecada estudar. Minha mãe vendeu o que tinha e comprou uma casa no bairro Paulicéia, em São Bernardo", conta o médico César Luiz Fagundes Marques. À essa altura já eram 87 filhos. Para a mudança, foi preciso fretar um ônibus.

Em 1969, foi fundada a Associação Cristã Verdade e Luz, no bairro Assunção, da qual foi presidente até a meados da década de 1980. Depois, se transformou em consultora para todos os que administraram o espaço. Com sabedoria, soube cuidar das aproximadamente 3.000 pessoas que buscaram os serviços da instituição nestes 42 anos. Até o último instante, Mamãe Clory se dedicou ao seu sonho de um mundo mais humano. (Angela Martins)

‘Pequenina no tamanho, mas gigante no coração'

Filho, assim éramos chamados por aquela que se entitulava mamãe. Pouco tempo tive para conhecê-la profundamente, mas aprendi com ela como praticar o bem. No alto de seus 94 anos, uma senhora pequenina no tamanho, mas gigante de coração. Demonstrações de força e garra não faltavam na história desta guerreira.

Na última Noite da Pizza, realizada no Lar da Mamãe Clory, tive momento especial. Ela beliscou a borda da minha pizza, contou um pouquinho de suas realizações, relembrou quando a primeira criança apareceu na sua vida, um recém-nascido abandonado na porta de sua casa. Ela cuidou como se fosse filho.

E hoje, mostrando ainda sua grandeza, fiquei sabendo por meio de uma de suas filhas que, ao sentir dores nessa batalha contra um câncer, ela se isolava em seu quarto sozinha. Assim não demonstrava fraqueza para aqueles que a rodeavam.

Mamãe Clory plantou e semeou o amor dentro do peito de todos nós. Beijando nossa testa ou servindo um delicioso cafezinho, sempre completava com sábias palavras de afeto.

Com tanta coisa boa, tenhamos a certeza de que sua história não acaba com seu falecimento, pois seu legado ainda há de fazer muitas pessoas felizes.Paz e luz no seu caminho, eterna Mamãe Clory. (Ricardo Trida)

Depoimentos:

"Mamãe Clory não diferenciava os filhos de sangue dos que ela criou. Seu amor era tão imenso que todos eram especiais. Tudo o que sou devo a ela."

Soely Gozzi, vice-presidente da Associação Cristã Verdade e Luz

"Mamãe Clory sempre nos ensinou a respeitar e amar ao próximo. É uma pessoa insubstituível."

Lucirene Braga Resende Maciel, 30, operadora de telemarketing

"Nos últimos tempos, ela dizia que estava chegando a hora dela. E que a gente teria de ter força."

Viviane Borges, uma dos 1.000 filhos de Clory Fagundes Marques, que participou do velório

"Era nosso ‘Chico Xavier de saias' em São Bernardo. Ela rompeu a barreira das religiões. Se sempre se despedia da gente com a frase paz e luz."

Estevão Camonesi, vereador de São Bernardo e amigo de Mamãe Clory

"Aprendi muito com ela. Temos muito o que doar na vida e ajudar nosso próximo. Era uma pessoa que passava muita luz, além de ser carismática e alegre. Não importa o que se passava, ela sempre dizia estar bem."

Maria Hummel, 56, trabalha no setor administrativo da entidade




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