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Supermercado em área verde gera suspeitas em São Bernardo

Moradores criticam corte de árvores e citam leis que teriam favorecido Grupo Bem Barato a adquirir terreno no centro

Por Raphael Rocha
Do Diário do Grande ABC
21/06/2020 | 07:00
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Nario Barbosa/DGABC


 A construção de um supermercado em uma das áreas que pertenciam à falida Fiação e Tecelagem Tognato, na região central de São Bernardo, tem gerado críticas de moradores do condomínio do entorno e levanta suspeitas a respeito da transação da área.

No início da semana passada, o Grupo Bem Barato deu início às obras de instalação de sua décima unidade no Grande ABC em um espaço de 9.984 metros quadrados localizado entre a Rua Doutor Marcel Preotesco e a Avenida Pereira Barreto, endereço nobre do município. Árvores, em sua maioria eucaliptos, estão vindo abaixo para dar espaço ao estabelecimento comercial, que disputará a clientela com o Sonda Supermercados, instalado na Avenida Pereira Barreto, mas na outra margem da via.

A supressão da vegetação em um dos espaços com maior adensamento de prédios – muitos de alto padrão e já instalados em outros terrenos que pertenciam à Tognato – causou comoção nos moradores, que se mobilizam para tentar reverter o cenário. Na sexta-feira, a equipe do Diário esteve no local. Funcionários munidos de motosserra e facões cortavam as árvores, abafando qualquer grito de protesto contra a derrubada.

O terreno foi transferido para a Prefeitura na segunda metade dos anos 2000 como forma de pagamento de dívidas tributárias que a Tognato tinha com a administração municipal. A empresa foi fundada em 1908, em Santo André, e se transferiu para São Bernardo nos anos 1940 – foi fundada por Giacinto Tognato (1881-1967), que dá nome a uma rua no bairro Baeta Neves, próximo de onde será o futuro supermercado. Foi em solo são-bernardense que a firma se agigantou nos anos seguintes, mas não conseguiu superar crise no fim da década de 1990. A empresa fechou as portas em 2005.

Parte dos pavilhões já tinha sido negociada para a iniciativa privada, para incorporadoras. Tanto que torres de apartamentos de alto padrão foram erguidas na Avenida Aldino Pinotti, paralela à Avenida Pereira Barreto, já ceifando considerável área verde do local. A que existe está mais restrita à Rua Doutor Marcel Preotesco.

O Grupo Bem Barato adquiriu esse trecho do antigo patrimônio da Tecelagem Tognato em julho de 2019, por leilão, pagando R$ 42,1 milhões, por uma de suas empresas – a Faias Paiva Administração e Participações S/A. A negociação é envolta de polêmica (veja mais abaixo). O governo do prefeito Orlando Morando (PSDB) nega irregularidades (também veja mais abaixo).

Morador do bairro, Silvio Paschoalino é um dos líderes do grupo de munícipes que querem ver a obra paralisada. “A região está bastante saturada de edifícios comerciais e residenciais. O trânsito é quase que caótico nos horários de rush. É a única área verde que restou no pedaço da região central”, reclamou. Segundo Paschoalino, há tentativa de se encontrar algum mecanismo jurídico para interromper a derrubada de árvores, mas o bloco pediu bom-senso do governo do prefeito Orlando Morando (PSDB).

Placas indicativas ao redor da obra apresentam números de autorização. O alvará de construção é o de número 265/2020, com data de expedição de 9 de abril de 2020, com validade até 2024. O licenciamento ambiental está sob registro local de SB-19522/2020-60. Há determinação de compensação ambiental pela supressão da vegetação: plantio de 187 mudas de espécies nativas de Mata Atlântica e pagamento de R$ 106,1 mil. “É uma contrapartida ridícula. É uma área verde que nunca vamos recuperar. Temos flora e fauna aqui que nunca mais iremos ver. Há passarinhos que frequentam esse espaço. Traz qualidade de vida ao centro”, contestou Paschoalino.

Advogado especialista em direito ambiental e assessor jurídico do MDV (Movimento em Defesa da Vida), Virgilio Alcides de Faria questionou os trâmites de licenciamento, até porque há pouca publicidade no trabalho do CMMA (Conselho Municipal do Meio Ambiente) local. “O município de São Bernardo tem competência para licenciar, pois tem convênio com a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (do Estado). Para tanto, exige-se existência de Conselho de Meio Ambiente com caráter deliberativo em regular funcionamento há pelo menos três anos e órgão ambiental contando com equipe técnica (no caso a secretaria).”

O CMMA foi criado via lei 6.662, de 19 de abril de 2018. Foi disciplinado no dia 15 de agosto de 2019.

ITBI foi reduzido na mesma época da venda
Os trâmites burocráticos de venda do terreno da Fiação e Tecelagem Tognato levantam suspeitas entre os moradores da região central de São Bernardo.

Em 27 de junho de 2019, o prefeito Orlando Morando (PSDB) sancionou a lei número 6.797, que promoveu redução temporária da alíquota do ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis). O tributo deixou de ser de 2,5% para 1,5%. À época, o governo justificou que tal medida era para incentivar a regularização de imóveis no município.

No dia 12 de julho, 15 dias depois de sancionada a legislação, a Prefeitura publicou edital para leilão de três áreas que haviam sido arrendadas para a municipalidade como forma de pagamento de dívida da falida Tecelagem Tognato. A meta da administração era arrecadar, com a negociação das três áreas, R$ 101 milhões.

A transação foi efetivada no dia 19 de julho, com apenas um terreno negociado: o de 9.984 metros quadrados, na esquina da Rua Doutor Marcel Preotesco com a Avenida Pereira Barreto. A compradora foi a Faias Paiva Administração e Participações, empresa com sede em Diadema e cujas proprietárias são Marcia Paiva Garcia e Marta Paiva Alves. Elas são irmãs de Marco Aurélio Paiva, dono do Grupo Bem Barato. Efetivada a transação, a lei perdeu sua validade – tornou-se inócua em 30 de agosto do mesmo ano.

Outra lei citada por moradores que traz polêmica à negociação é a de número 6.756, de 14 de fevereiro de 2019. Essa medida modifica as regras do coeficiente de aproveitamento básico, índice que estipula o volume de verticalização e utilização de um determinado terreno.

Pelas regras vigentes em São Bernardo, a construção vertical se limita a 1,5 o tamanho do espaço. Ou seja, em uma área de 10 mil metros quadrados, o prédio pode subir 15 metros, em conta simples. Entretanto, a legislação 6.756/2019 abre brecha para construção acima desses índices em terrenos públicos, seja em posse do município ou alienado. Para esses casos, o coeficiente de aproveitamento básico é de três vezes o tamanho do espaço.

As relações empresariais de Morando são outro componente nesse episódio da construção de uma unidade do Grupo Bem Barato na antiga área da Tecelagem Tognato. Morando foi por muito tempo vice-presidente da Apas (Associação Paulista de Supermercados). Sua família é dona de um supermercado que teve início na região do bairro Batistini.

Em fevereiro deste ano, o Grupo Bem Barato inaugurou sua mais recente unidade: na Avenida Maria Servidei Demarchi, em terreno onde estava localizado o falido Restaurante São Francisco. O investimento foi na ordem de R$ 30 milhões. Morando estava presente na solenidade de abertura, ao lado Marco Aurélio Paiva e suas irmãs. O Bem Barato ainda conta com lojas no Rudge Ramos, Taboão, Jardim Imperador e Centro.

O Grupo Bem Barato não se posicionou sobre o caso.

Governo nega ilegalidade e cita compensação
A Prefeitura de São Bernardo garantiu que todo o trâmite de negociação do terreno e da supressão de vegetação para instalação de um supermercado está amparado pela legislação.

Em nota, o governo de Orlando Morando (PSDB) disse que a autorização para o corte das árvores se deu após garantias de plantio de 187 mudas de espécies nativas de Mata Atlântica no próprio imóvel. “Os procedimentos seguiram o disposto na legislação ambiental municipal vigente. Os exemplares arbóreos antes situados no local não eram árvores nativas e este tipo de remoção é permitida por lei.”

O governo negou que tenha dado restrita publicidade ao processo de leilão do terreno – citou, inclusive, reportagem feita por este Diário à época dos fatos. “Houve máxima transparência e publicidade. Não é de interesse da Prefeitura saber quem são os compradores de concorrência pública.”

A gestão também avaliou que a redução temporária de alíquota do ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis) não favoreceu o Grupo Bem Barato porque, à ocasião da lavratura da escritura, quando seria cobrado efetivamente o tributo, o benefício já tinha expirado. O governo não informou, entretanto, quando o registro foi feito. Sobre o coeficiente de aproveitamento básico, citou que a legislação aprovada no governo Morando “prejudicou o interessado, uma vez que pelas regras de zoneamento até então vigentes, os compradores de áreas públicas poderiam pleitear edificações sem seguir nenhum índice”.

O Executivo declarou que os outros dois terrenos da Fiação e Tecelagem Tognato serão colocados à venda e está em fase de emissão de novo laudo para definição de valor mínimo aceitável. A respeito do CMMA (Conselho Municipal de Meio Ambiente) e sobre sua atuação junto à transação do espaço ao Grupo Bem Barato, disse que “não houve necessidade, do ponto de vista legal, de Conselho de Meio Ambiente do Município, pois não se trata de área de proteção ambiental”. “A alienação teve aval do grupo técnico de alienações, que é o responsável, por lei, para autorizar a venda de próprios públicos.”




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