Cultura & Lazer Titulo
Figo: outro que não é fruto
Silvio Lancellotti
Especial para o Diário
23/12/2007 | 07:14
Compartilhar notícia


Originária do Oriente Médio, provavelmente da região da Mesopotâmia, com atestados arqueológicos de cerca de 11.000 anos antes de Cristo, planta da família das Moráceas, entre 800 e 1.000 espécies já catalogadas, a bela figueira, peculiar por resistir ao tempo, às intempéries, e por atingir, além dos dez metros de altura, ostenta uma singularidade basilar: só uma das suas variedades proporciona um fruto efetivamente comestível, a chamada de Ficus carica – que se espalhou através do Mediterrâneo e que, atualmente, pode se encontrar, abundante, em qualquer plaga de clima tropical neste universo.

Fruto comestível, claro, pelos humanos. Uma infinidade de animais, dos macacos às borboletas, desfruta o figo de suas numerosíssimas irmãs. Isso, de uma forma aleatória, na dependência dos nutrientes que atraem os devoradores de plantão – o figo se decompõe e se deteriora rapidamente, mesmo no galho em que brota. Aliás, detalhe radical, perdão, o figo não é um fruto no sentido botânico e fisiológico do termo. Quem examina, externamente, o seu aspecto visual, não imagina que, num figo, as flores, invisíveis, se alojam dentro da sua casca e ao redor das suas sementes. Graças a um orifício mínimo, na pele, as flores se polinizam, as sementes evoluem e a lindeza, enfim, desabrocha.

Antiguidade - Os romanos idolatravam o figo. Marcus Portius Cato, o Velho (234 a.C.-149 a.C.), o listou como mágico nos seus compêndios de agricultura. Descobriu que o saboreável nascia de uma planta feminina. Da árvore masculina também nasciam rebentos, mas indigeríveis, que os romanos utilizavam para alimentar caprinos e gansos – um jeitão rudimentar de estimular o crescimento do seu fígado, que já redundava, primitivamente, no celebrado foie-gras de agora.

Coube aos romanos ensinarem os sarracenos, do Oriente Médio, a suave mania do figo desidratado que encanta os pratos do Levante. Logo entenderam que o produto não agüenta as viagens. Em suas investidas ao Leste da Itália, os exércitos dos Césares literalmente carregavam, nas suas bagagens, sacolas e mais sacolas, às toneladas, daquela sua invenção providencial. No figo seco, os nutrientes formidavelmente se concentram. E o seu consumo auxiliava as legiões nas suas longas marchas através de zonas áridas, como os desertos.

Iguaria - No Brasil, a figueira aportou nas naus do colonizador lusitano, por volta do século XVI. Velozmente a planta se aclimatou da Bahia ao Rio Grande do Sul – e, posteriormente, graças ao empenho de mestres do cultivo, também no Nordeste e no Norte; embora, de Sergipe ao Piauí, por causa das condições do solo pouco feliz, pouco profundo e pouco permeável, sem a devida irrigação, não chegue a ultrapassar os cinco metros de altura.

Ah, uma vantagem dessa árvore tão interessante e adaptável: no Norte e no Nordeste, o inverno rareia – o repouso vegetativo, porém, substitui o frescor das aragens indispensáveis.

O mundo colhe acima de 1,2 milhões de toneladas de figo a cada 12 meses. A Turquia lidera com cerca de 300.000, seguida pelo Egito, 180.000. No Brasil, o volume ainda não atinge a cota das 90.000. A cidade de Valinhos, nos entornos de Campinas, responde por 80% desse teor, com o seu chamado “figo-roxo” – na imensa maioria, utilizado em conservas, em compotas e em geléias. O figo, entretanto, pressupõe muitas outras possibilidades culinárias. Neste domingo, falo da sua simbologia mítica, de suas propriedades saudáveis e ofereço duas receitas, numa salada e numa farofinha, es-pe-ta-cu-lar.

O figo e a saúde - Absurdamente energético, pela sua quantidade de carboidratos, o figo também ostenta enormes teores de sais minerais como o Cálcio, o Fósforo e o Potássio, que participam da estruturação dos ossos e dos dentes, auxiliam no alívio da fadiga mental e favorecem a transmissão dos impulsos nervosos. Fresco, o figo, ainda, vale como um expectorante dos incômodos pulmonares, como um laxante natural e como um vermífugo, inclusive para os cães e os gatos que o aceitem. Desidratado, graças à mobilização das suas substâncias nutrientes e graças à facilidade do seu acondicionamento, fornece energias extras, principalmente aos triatletas e aos maratonistas. Melhor, trituradinho, o seco pode participar de compressas nos casos de inflamações, de abcessos superficiais e de furúnculos. O fresco, sem machucaduras graves na sua casca, resiste solertemente numa geladeira, até cerca de sete dias de resfriamento.

A figueira e as artes - Já escrevi, em outubro, que a Bíblia não determina a maçã como o fruto proibido de Adão e Eva no seu desastre no Paraíso. Mas fica bem claro que, ao se aperceberem do pecado, lá cometido, os dois se envergonharam da sua nudez e daí protegeram as suas partes pudendas com vastas folhas de figueira. Valeu a notificação – tanto que, nas cópias de centenas de obras clássicas das artes do passado, cidadãos preocupados com a vergonha passaram a colocar folhas de figueira em obras de antologia. Aconteceu, por exemplo, nos muitos sucedâneos do David, que Michelângelo (1475-1564) esculpiu pelado de 1501 até 1504. E aconteceu com uma infinidade de pinturas renascentistas, claro, conspurcadas pelo excesso de zelo dos censores da época. Ironicamente, em 1 Reis 4:25, o mesmo Antigo Testamento estabelece que cada homem teria o direito à sua vinha e à sua figueira, uma prova divina da sua prosperidade.

Receitas

 

SALADA DE FIGO DA VIVI
Ingredientes, para uma pessoa: 4 folhas de alface americana. 4 folhas de rúcula. 100g de presunto cru, meticulosamente cortado em tirinhas. 1 figo, fresco, delicadamente talhado em quatro gomos, sem que se separe. 5 bolinhas de queijo de cabra. 3 colheres, de sopa, de azeite de olivas, preferivelmente o extra-virgem. 1 colher, de sopa, de vinagre balsâmico. Sal. Hortelã picada.

Modo de fazer: Num prato bem charmoso, combino, intercaladamente, as folhas de alface e de rúcula. Espalho as tirinhas de presunto cru. No meio, disponho o figo, já aberto. Dentro do figo, encaixo, delicadamente, uma das bolinhas do queijo de cabra. Distribuo as outras quatro ao redor. Misturo, até que o resultado se emulsione, o azeite, o vinagre, o sal necessário e um pouco de hortelã picada. Banho a salada, homogeneamente, com esse molhinho.

FAROFINHA DE FIGO SECO
Ingredientes, para uma pessoa: 1 colher, de sopa, cheia, de manteiga. 2 colheres, de sopa, de figo seco, cortado em tirinhas. 2 colheres, de sopa, de damasco desidratado, idem. 2 colheres, de sopa, de uvas passas, amarelas, sem caroços. 4 colheres, de sopa, de vinho branco, bem suave. 1 xícara, de chá, de farinha de mandioca, já torrada. 1 colher, de sopa, de salsinha bem batida.

Modo de fazer: Numa frigideira, derreto a manteiga. Incorporo o figo seco, o damasco e as uvas passas. Mexo e remexo. Despejo o vinho, para que os outros componentes comecem a amolecer. Agrego a farinha de mandioca. Misturo e remisturo, pacientemente, até que a farinha comece a se mostrar bem douradinha. No último instante, completo com a salsinha bem batida.
Observação: Uma farofinha diferente do habitual, ideal como parceria de um frango, de um peru ou mesmo de um tender de Natal ou Ano Novo.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;