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Colecionadores disputam herança dos modernistas
Por Do Diário do Grande ABC
20/06/1999 | 14:09
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A grande arte brasileira pode nao ter sido produzida em papel, mas certamente os artistas modernos do país, de Tarsila a Portinari, nunca dispensaram o suporte. Muitos pintores, aliás, teriam sido melhores desenhistas se o mercado brasileiro nao alimentasse um preconceito absurdo contra a obra produzida em papel, muito menos valorizada do que telas e esculturas. Di Cavalcanti, um grande desenhista, ficou mais conhecido por seus óleos, embora fosse melhor na primeira atividade. Ele é a estrela maior da mostra "Obras sobre Papel - Do Modernismo à Abstraçao", conjunto monumental de 50 obras que a Dan Galeria poe à venda numa exposiçao que será aberta terça-feira, às 21 horas, em Sao Paulo.

Dos artistas que participaram da Semana de Arte Moderna de 22 aos pioneiros do construtivismo geométrico no Brasil, a exposiçao reúne desenhos de Tarsila, Portinari, Pancetti, Cícero Dias, Antonio Gomide, Ismael Nery, Milton Dacosta, Djanira e Flávio de Carvalho. Essas raridades pertencem a um colecionador carioca e foram reunidas pelo marchand paulistano Peter Cohn, que pediu à crítica Maria Alice Milliet uma apresentaçao do conjunto no catálogo da mostra. Os preços justificam o investimento: o desenho mais barato custa US$ 5 mil e o mais caro dez vezes mais.

Apenas como referência de mercado, uma tela de Guignard, recentemente oferecida num leilao da Christie's, teve como lance inicial o preço do mais caro desenho da exposiçao. Cohn sabe que pedir US$ 50 mil por um desenho é arriscado, mas conhece bem o mercado. Uma aquarela como "Cena de Bar", de Di Cavalcanti, é realmente uma peça de museu, nao só por suas evidentes qualidades artísticas, como pelos personagens que saltam da cena noturna, entre eles o escritor Mário de Andrade. Mário, muito à vontade, mostra os olhos arregalados ao lado do elegante companheiro de gravata que parece cochichar algo ao pé do ouvido do autor de "Macunaíma". Ao fundo, um detalhe revelador: a mulher que parece imitar a Marlene Dietrich de "O Anjo Azul" (1930), algo bem possível, em se tratando de um desenho da mesma época do filme dirigido pelo alemao Josef von Sternberg, obra canônica no imaginário gay.

Acadêmicos e modernos - Como outros trabalhos da exposiçao, a aquarela de Di Cavalcanti define o suporte e deixa a técnica em aberto. É pintura ou desenho? Deliberadamente, a crítica Maria Alice Milliet trata esses desenhos como obras de transiçao. Era uma prática comum da Academia forçar qualquer artista a esboçar, primeiro em papel, o que ele pretendia transferir para a tela. Muitos pintores de formaçao acadêmica, como Portinari, jamais abandonaram o costume. Ocorre que Di Cavalcanti nao era acadêmico e começou a vida como caricaturista. Nao tinha esse compromisso com exercícios preparatórios, embora muitos de seus desenhos tenham essa natureza.

A exposiçao, assim, comprova o que há muito se comenta: Di Cavalcanti era melhor desenhista do que pintor, Portinari nunca deixou de ser acadêmico, Tarsila reprimiu sua vocaçao modernista e Ismael Nery poderia ter sido maior do que foi se nao tivesse morrido jovem (aos 34 anos) e sofrido de picassianite aguda. Revela também como errou o bom artista Milton Dacosta, no fim da vida, ao trocar o rigor construtivo dos anos 50 pela figura banal de uma vênus adiposa.

Integridade - Por outro lado, a pintura de Pancetti mantém sua integridade nos mais belos desenhos da mostra, duas paisagens de Campos do Jordao e uma bananeira na entrada de um modesto hotel de Itanhaém (todos os trabalhos dos anos 40). Pancetti, mais conhecido por suas marinhas, prova que seu olho era tao educadamente selvagem como o de uma máquina fotográfica, enquadrando a paisagem de modo pouco convencional. É o grande momento de uma exposiçao que reserva ainda outras surpresas.

"Há dois desenhos de Di Cavalcanti que fogem completamente a seu estilo, "A Fábrica" e "Namoro à Noite"', especialmente o último, que tem uma construçao quase legeriana, nada típica do pintor brasileiro", lembra a curadora Maria Alice Milliet. Segundo a crítica, exposiçoes como essa servem para promover uma revisao na história do modernismo brasileiro. "É preciso lembrar que artistas como Anita Malfatti estudaram na Alemanha e nos Estados Unidos e estavam sintonizados com a cultura de massa e a nascente publicidade desses países", diz, derrubando o mito da pureza do modernismo tupiniquim.

"Di Cavalcanti, sendo caricaturista e ilustrador, foi o primeiro a tratar o desenho como meio de expressao tao forte como a pintura, mas essa revoluçao nao foi só formal", diz. Maria Alice Milliet lembra que seus desenhos representam o ponto "mais alto e sincero" da carreira do pintor, porque ele soube incoporar personagens marginalizados (prostitutas, moradores de favela) sem abrir mao da invençao. Como exemplo, ela cita o desenho "A Fábrica" (1930), em que o espaço é construído como numa obra metafísica de Giorgio de Chirico.

A fidelidade de Di Cavalcanti e outros modernistas da mostra à figura é justificada por Maria Alice Milliet como fruto de um compromisso político, muito mais do que formal. Desconstruir ou deformar o objeto era impensável para artistas que pretendiam, segundo ela, levar para a tela e o papel a realidade do homem das ruas. Esse "qualunquismo" pictórico acabou comprometendo a obra de grandes desenhistas como Portinari, embora ele esteja representado na mostra por um desenho da série dedicada às desventuras de Dom Quixote.

Portinari lutava contra os moinhos de vento da "ciência européia". Tinha de resolver a contradiçao interna de ser descendente da tradiçao italiana e pintar num país de miseráveis. A exposiçao evita seus personagens da cultura periférica. Seus desenhos mostram rostos de criança, um estudo para o painel "Guerra e Paz" e, no máximo, uma mulher peneirando café.

O modernismo, apesar de marcado pela política, reservou lugar para o lirismo. Os desenhos de Ismael Nery e Cícero Dias sao exemplos de afirmaçao lírica num ambiente fortemente dominado pela ideologia. "Sao obras para colecionadores que nao pensam a curto prazo", define a curadora Maria Alice Milliet. E ela nao está falando apenas de artistas com valorizaçao certa. Fala de uma exposiçao que pode fazer com que os colecionadores vejam o papel com outros olhos.




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