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Dona Neuma da Mangueira é enterrada ao ritmo de samba
Por Do Diário do Grande ABC
18/07/2000 | 10:57
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O corpo de Dona Neuma da Mangueira foi enterrado às 10h45 desta terça-feira no cemitério Sao Francisco Xavier, no Caju, Rio de Janeiro. Ela foi homenageada pela bateria da escola de samba com o hino Exaltaçao à Mangueira que emocionou as cerca de 300 pessoas presentes no sepultamento. Neuma Gonçalves da Silva morreu nesta segunda-feira aos 78 anos depois de sofrer um acidente vascular. Ela, que estava internada no Hospital Salgado Filho desde o último dia 6, na quinta-feira, entrou em coma.

Músicos e autoridades de todo o país compareceram ao velório da sambista, que teve clima de descontraçao, com rodas de samba, dança e cerveja, assim como Dona Neuma desejava.

Um bom palavrao e o riso alegre, engraçado, gozador. Assim saudava o povo e exigia passagem Neuma da Mangueira, respeitada em todos os feudos do morro, do Buraco Quente ao Santo Antônio e ao Chalé; da Pedra à Candelária; do Telégrafo à Joaquina.

Neuma nasceu em Madureira, em 8 de maio de 1922, mas sua família foi morar próximo ao Buraco Quente ainda criança. Cresceu junto com a escola que seu pai ajudou a criar. Sambista desde o berço, já desfilava, menina, como mirim da Mangueira, na Praça Onze. A partir de entao, fez de tudo na escola. Fundou e foi presidente do departamento feminino, dirigiu as crianças e as baianas, sabia do carpinteiro e da bordadeira, do escultor e do carpinteiro, dos segredos dos ateliês e dos barracoes. Atualmente era uma força por trás do presidente Elmo José dos Santos, cuja candidatura, duas gestoes atrás, começou na sua casa.

A partir do palavrao, que coloria e dava um sabor especial à sua linguagem desabrida, mas nunca vulgar, inventou um método de alfabetizaçao próprio. ``Os moleques do morro nao conseguiam aprender a ler, coitados, nao passavam nem para a primeira série. Mas eram todos uns bocas-sujas. Aí peguei um pedaço de papel e escrevi um palavrao de quatro letras, começado por p. Ensinei os garotos a ler e escrever o palavrao, depois outro e outro. Sabendo escrever palavrao, eles aprenderam a ler e a escrever tudo o mais. Foi assim que alfabetizei os danados dos moleques', contava Neuma, sempre entusiasmada com a eficácia do método.

A Mangueira era para ela o lugar ideal, um paraíso. Nascedouro do sol, que se erguia todas as manhas ``lá pelos lados do pendura-saia'. Conversa com Neuma era sempre assim: assunto puxando assunto, e a cada um deles correspondia um capítulo da história do morro da Mangueira e da própria escola de samba Estaçao Primeira, fundada em abril de 1928 por seu pai, Cartola, Zé Espinguela e outros heróis dessa magnífica saga popular. ``A Neuma era uma pessoa com quem eu sempre me socorria quando me faltava clareza de algum episódio. Primeiro em relaçao à história da Mangueira e, depois, em relaçao à história do próprio samba, uma vez que parte das raízes dela, pelo lado materno, estao no Estácio, no morro de Sao Carlos. Neuma conviveu com toda aquela massa de fundadores do samba', revela o jornalista e pesquisador José Carlos Rego, autor do livro A dança do samba - exercício do prazer.

Boa de frases, criou algumas que viraram bordoes. ``Verde e rosa é fantasia', cravou ela, por exemplo, face às críticas às cores da Mangueira, combinaçao escolhida pelo próprio Cartola. `` Ninguém acha feio uma flor rosa com suas folhas verdes', provocava, lembrando que nos jardins da Vila Olímpica da Mangueira - centro de excelência esportiva ao pé do morro - só se cultivam flores cor-de-rosa. ``E todo mundo acha bonito'.

A casa de Neuma, na Rua Visconde de Niterói, à beira do morro, em frente à linha do trem, era habituada ao convívio com personalidades como Villa-Lobos e Noel Rosa. E o popular prefeito Pedro Ernesto, por quem nutria grande reverência. Foi ele que, nos anos 30, construiu a primeira escola da Mangueira, a Humberto de Campos. Negrao de Lima, que foi governador do antigo Estado da Guanabara, deu de presente a Neuma um telefone, como reconhecimento da açao social que ela exercia por evidente liderança.

Naquele ano houve um grave acidente ferroviário na estaçao Mangueira, com muitos mortos e feridos. Neuma tomou a frente da situaçao e comandou o resgate das vítimas.

Impressionado, o governador decidiu, entao, instalar na casa dela o aparelho que se tornou o primeiro telefone comunitário das favelas cariocas. A casa, que era já o coraçao do morro, passou a ser também uma eficiente central de circulaçao de notícias. Nascimento e morte eram anunciados pelo telefone de Neuma. Conta a filha Chininha - Eli Gonçalvez da Silva - que no último aniversário, em 8 de maio, Neuma dispensou presentes pessoais: pediu fraldas para uma creche comunitária da Mangueira.

Essa integraçao afetiva tao forte com o morro foi retratada pelo cartunista Lan. No seu livro É hoje, uma crônica ilustrada do carnaval e das personalidades do samba carioca, com texto de Haroldo Costa, Lan mostra Neuma como uma espécie de espírito tutelar da Mangueira. Ela aparece tendo nas maos o telefone, divina providência do morro. E os casebres da paisagem entao de zinco parecem nascer dos fios de seus cabelos encaracolados. Neuma chorou de alegria ao se ver assim representada. ``Lan tem razao, eu sou o próprio morro da Mangueira'.

Cartola, num momento de grande inspiraçao, perguntava em samba, perplexo e encantado: ``Habitada por gente simples e tao pobre/ que só tem o sol que a todos cobre/ como podes, Mangueira, cantar?' Pode, talvez, porque, à sua maneira, construiu uma crônica de pequenos heroísmos, emoçao e cumplicidade. É tanto caso que até fica difícil lembrar. Mas Neuma, a memória viva, lembrava. ``Teve um ano, acho que foi 1938, que a Mangueira nao tinha dinheiro para pagar à bordadeira. Ela se recusava a entregar a bandeira do desfile, se nao recebesse o pagamento. 'Entao, contava Neuma, grupos de moça percorreram o morro, levando bandeiras velhas, abertas e seguras pelas pontas. ``O pessoal da favela ia jogando sua contribuiçao dentro das bandeiras. Era o dinheirinho do pao, do leite. Foi assim que conseguimos o dinheiro para pagar a bandeira nova e desfilar no carnaval'.

Dona Neuma tinha um jeito muito próprio de mae da briga, sempre cercada de crianças. Madrinha de dezenas delas, viu nascer e viu morrer tantos garotos, atraídos pela marginalidade. ``Mas agora, depois da Vila Olímpica e dos programas sociais, isso mudou. É muito difícil encontrar hoje crianças da Mangueira na rua. Estao todas estudando', orgulhava-se nesses últimos anos a pioneira que ensinou tanta gente a ler e escrever pelo método do palavrao.




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