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Por 20 anos, Blatter percorre mundo dando dinheiro como agrado em troca de votos
14/06/2015 | 06:30
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As Ilhas Cayman têm uma das piores seleções do mundo, o futebol não é o principal esporte do país e sua população inteira caberia dentro do estádio do Maracanã, no Rio. Ainda assim, desde 2008 a Fifa enviou para a ilha quase US$ 2 milhões para a construção de dois campos de futebol. Em março de 2014, mais US$ 500 mil foram destinados ao país, com a promessa de que o dinheiro seria usado para a construção de gramas artificiais. Sete anos depois, nem os campos nem o gramado existem.

Nos rincões mais esquecidos do planeta, nos locais menos tradicionais para o futebol e nas cidades mais marginais dos centros de poder, a Fifa está presente. Nos últimos 20 anos, Joseph Blatter construiu sua base de poder proliferando campos de futebol. Mas, junto com eles, vieram agrados, dinheiro e subornos a cartolas que passaram a ser aliados incondicionais. Na prática, era um sistema que o garantia votos e cinco vitórias seguidas em eleições. Em troca, Blatter não perguntava muito qual era o destino do dinheiro para "o desenvolvimento do futebol".

Ao total, a Fifa já gastou mais de US$ 284 milhões na construção de 668 campos de futebol pelo mundo. Cada um deles, em média, custa US$ 565 mil, um investimentos que traz um retorno esportivo medíocre. Mas uma aliança política sólida.

No centro do escândalo está o projeto Goal, destinado a levar o futebol a locais pobres com a construção de centros de treinamento, campos e infraestrutura. Mas a realidade é que, segundo auditores e mesmo dirigentes, o dinheiro em muitos casos jamais chegou aos jogadores.

Em cada um desses locais, placas em homenagem a Blatter, bustos e fotos marcam a homenagem que o país-sede faz ao cartola suíço. Mas os escândalos sobre o uso desse dinheiro do futebol se proliferaram na mesma velocidade que sua imagem pelo mundo. Auditorias revelaram que, em muitos dos casos, parte do dinheiro foi para o bolso dos dirigentes ou usado de uma forma que acabou enriquecendo esses oligarcas da bola.

Uma das entidades envolvidas em um escândalo é a Federação de Futebol do Nepal. Uma auditoria constatou que a entidade realizou "movimentos inapropriados de fundos" e seu presidente, Ganesh Thapa, passou a ser investigado. Na Fifa, nenhum aliado é punido. Zurique enviou auditores da KPMG que sugeriram "mudanças importantes" no funcionamento da entidade e dos gastos com projetos sociais. Uma vez mais, a palavra corrupção nem sequer entrou no vocabulário dos cartolas.

HUMANITÁRIO - Um dos casos mais importantes de desvio de dinheiro ocorreu com Manilal Fernando, ex-membro do Comitê Executivo da Fifa e chefe do futebol do Sri Lanka. Ele simplesmente teria usado dinheiro destinado às vítimas do tsunami na Ásia para enriquecimento pessoal.

No Paquistão, depois de um terremoto em 2005, a Fifa também decidiu mandar dinheiro e realizar um total de nove Projetos Goal, inclusive em Peshawar. Dez anos depois, apenas um deles foi inaugurado: a sede da Federação Paquistanesa de Futebol, em Lahore.

Já o vice-presidente da Fifa até 2011 é suspeito de ter desviado dinheiro que havia sido doado para as vítimas do terremoto no Haiti e que deixou mais de 200 mil mortos. No dia 12 de janeiro de 2010, o país sofreu um dos piores terremotos da história, com um impacto devastador sobre sua população. Mais de três milhões de pessoas foram afetadas, 250 mil casas foram destruídas e 30 mil prédios comerciais desabaram.

Dias depois, a Fifa anunciaria o envio de US$ 250 mil para ajudar as vítimas e, em especial o futebol, também afetado pela catástrofe. Parceiros sul-coreanos completariam a doação, que teria chegado a quase US$ 1 milhão.

O terremoto no Haiti destruiu a Federação de Futebol do Haiti e matou pelo menos 30 de seus integrantes entre jogadores, técnicos e cartolas. Um dos treinadores mais famosos do país, Jean-Yves Labaze, foi uma das vítimas do terremoto. Em 2007, conseguiu a classificação histórica da seleção para o Mundial Sub-17.

Muitos dos dirigentes que estavam no prédio eram jogadores da seleção no início da década. Mas, segundo as investigações do FBI, o dinheiro doado acabou sendo desviado pelos cartolas. Os investigadores suspeitam que o então vice-presidente da Fifa, Jack Warner, ficou com US$ 750 mil. Naquele momento, ele era o presidente da Concacaf, responsável pelo Haiti.

MINHA CASA - Na Tailândia, o chefe da entidade local de futebol, Worawi Makudi, usou os US$ 860 mil dados pela Fifa para o Projeto Goal para comprar um terreno para a construção de campos. US$ 400 mil foram gastos em uma sede de três anos para que a Tailândia tivesse, segundo a Fifa, "o espaço necessário para uma liderança profissional".

O que ele não contou, porém, foi que o terreno encontrado era dele mesmo e o dinheiro acabou em suas contas. Em 2009, Blatter ignorou qualquer polêmica e fez questão de viajar até a Tailândia para inaugurar os campos.

Escândalos parecidos também foram registrados nos projetos Goal em Harare, no Zimbábue. A federação local decidiu abrir investigações depois que sua sede começou a dar sinais de franca decadência em sua estrutura física. Isso tudo apenas dois anos depois que o prédio foi reformado e que a entidade recebeu US$ 250 mil da Fifa para a criação de um complexo esportivo, que se chamaria Zifa Village.

A escolha de quem recebe dinheiro parece não estar baseada nas condições das ligas ou dos países. Na All India Football Federation (AIFF), um cheque anual é enviado pela Fifa ao organismo para promover o futebol de base. Apenas para o Cooperage Stadium, a Fifa enviou mais de US$ 2 milhões, em uma das economias que mais crescem no mundo e promovem um torneio hoje milionário.

Blatter não respeitou nem mesmo as resoluções do Conselho de Segurança da ONU ou as sanções unilaterais impostas por Estados Unidos e Europa contra ditaduras pelo mundo. Em 2011, ele fechou um contrato para apoiar a construção de um estádio em Mianmar. O problema é que as obras seriam tocadas pela empresa que, por acaso, era também do presidente da Federação de Futebol de Mianmar, o empresário Zaw Zaw.

Havia um só problema: Zaw estava na lista negra das sanções dos governos europeus, da Suíça e dos Estados Unidos. Ou seja, não poderia receber dinheiro ou assistência estrangeira. A Fifa respondeu: quem estava na lista negra era Zaw, não o futebol de Mianmar. Questionada sobre quem teria recebido o dinheiro, a Fifa também manteve sigilo. "Os detalhes do contrato são confidenciais".

Dentro e fora da Fifa, não são poucos os que por anos já denunciam o sistema, como uma campanha permanente de Blatter por votos. Em 2002, o ex-braço direito do suíço, Michel Zen Ruffinen, preparou um informe aos membros da Fifa denunciando o esquema. "O presidente usou e abusou dos projetos Goal para seus interesses pessoais e os serviu como o meio para fazer campanha", escreveu o então secretário-geral. Dias depois, ele seria demitido.

Em Lusaka, capital de Zâmbia, o ex-presidente da Federação de Futebol de Zâmbia, Simataa Simataa, concedeu na semana passada uma entrevista no mesmo tom a jornais ingleses. "Uma boa ideia está sendo usada contra os princípios da democracia", disse. "As pessoas tendem a favorecer qualquer um que esteja fazendo algo bom. Eles aceitariam receber casas de Pablo Escobar usando dinheiro das drogas. Lamentavelmente, isso é o que o Projeto Goal se transformou", declarou. "Eu esperava que esse fosse um projeto institucional. Mas ele favorece Blatter. Isso lhe dá vantagens e todos pensam que, se um novo candidato vier, não haverá mais projetos Goal", completou.

Já em Trinidad e Tobago, a federação local resolveu de forma relativamente simples seus problemas com eventuais escândalos envolvendo a construção de um centro de treinamento financiado pela Fifa: impediu a entrada de jornalistas. O local, que custou US$ 22 milhões, é mais usado hoje para casamentos e reuniões de partidos políticos que para o futebol.

Em 2012, uma auditoria realizada pela Concacaf mostrou que o local não estava registrado no nome da Federação de Futebol de Trinidad e Tobago, mas sim de Jack Warner, indiciado pelo FBI por corrupção em maio. Ele era vice-presidente da Fifa e, até 2011, um dos maiores aliados de Blatter. Não por acaso, uma das salas para cinco mil pessoas no centro esportivo ganhou um nome de um velho amigo: Joseph Blatter.




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