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‘Poseidon’: direto para o fundo
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
23/06/2006 | 08:51
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Era um barquinho a deslizar, no macio azul do mar... Isso até uma onda colossal virá-lo de ponta-cabeça, com todo o convés inundado pelo oceano, e obrigar uma porcentagem mínima dos abastados passageiros que ali estavam para comemorar um Réveillon a percorrer o navio, entre explosões e enchentes, e encontrar a saída e o oxigênio. Objetivos do enredo de Poseidon que, estruturalmente, a refilmagem assinada pelo cineasta alemão Wolfgang Petersen não alcança.

A obra original, datada de 1972 e intitulada O Destino do Poseidon, já era de lascar o casco. O remake de Petersen consegue fraturá-lo de vez. Conta a mesma história sobre um grupinho de sobreviventes que tenta se safar do tal Poseidon, luxuosíssimo, vastíssimo e moderníssimo (e tudo que há de íssimo) navio, que é revirado de hélices para o ar. A seguir, pernas e braços para que os quero, em meio às ruínas da embarcação, na busca de um acesso à superfície.

Como todo filme-catástrofe, Poseidon é uma obra que tem como moinho a busca pela sobrevivência imediata. Não é muito mais que isso, até porque parece haver certa indiferença a elementos cinematográficos, para não alegar desleixo. Todo o filme absorve a canastrice dos atores, entre eles alguns veteranos como Kurt Russell e Richard Dreyfuss e promessas como a argentina Mia Maestro. Canastrice não é propriamente sinônimo de incompetência; mais profundamente, seria a faculdade de resumir em um restrito catálogo de gestos e feições o trabalho de interpretar.

Na estrutura narrativa de Poseidon, Petersen faz a mesma coisa: resume em imagens breves, telegráficas, no limite do nexo, toda uma teia de relações humanas e a turnê pelos escombros que formam o tecido do filme. Mesmo os efeitos visuais, do incidente às mortes em massa, parecem um arremedo de Titanic. Em suma, Poseidon é, todo ele, um filme-canastrão. Se a arte audiovisual é uma engenharia de signos (imagens que reconstituem as noções de realidade), Petersen executa uma arte baseada em signos dos signos. Seria o mesmo que depositar um bife cru à mesa e apresentá-lo como refeição completa.

Anexado ao restante da filmografia do cineasta (Tróia, Mar em Fúria, Força Aérea Um, Epidemia, A História sem Fim, O Barco), Poseidon representa outra coisa além de mais um filme seu em alto-mar. Parece um novo manifesto contra o estado de coisas, que deve ser alterado pela via do choque, do desastre. Para consertar uma civilização que chegou ao debacle, só a tragédia funciona. Mundos em perigo (A História sem Fim, Epidemia) ou líderes desafiados para renascerem fortalecidos ou mitificados (Força Aérea Um, Tróia): a cada filme, Petersen renova, com intensidades oscilantes, o mito de Sodoma e Gomorra e a procura pelos dez homens justos que, caso encontrados, representariam a salvação das duas cidades bíblicas. Uma atitude reforçada pelo discurso que reencontra as origens helênicas do nome do navio, pelo atentado da natureza (monoteísmo?) ao barco (símbolo do dionisíaco) e pelo crucifixo da personagem de Mia que salva a lavoura. Uma metáfora da cristianização em terras pagãs? Pode até ser. Convém perguntar que civilização é essa, em que personagens latinos são descartáveis e que defende o conceito ancestral de que o sacrifício do líder político é essência do renascimento social? Questão que o cineasta não responde. Pelo menos não neste filme.

POSEIDON (Idem, EUA, 2006). Dir.: Wolfgang Petersen. Com Josh Lucas, Kurt Russell, Richard Dreyfuss, Mia Maestro. Estréia no ABC Plaza 1 e 6, Shopping ABC 3, Extra Anchieta 4, Metrópole 2, Mauá Plaza 2 e 3, Central Plaza 3 e 10 e circuito. Dur.: 99 minutos. Censura: 12 anos.



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