Cultura & Lazer Titulo
Ousadia e sensibilidade
Dalila Teles Veras
Especial para o Diário
26/12/2004 | 14:56
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O trato das questões culturais pelo poder público no Brasil possui uma história permeada de boas intenções e resultados quase sempre frustrantes. O Estado mais tem atrapalhado do que ajudado. Ou assume papéis que não lhe competem, como o de interventor que ora age como mecenas ora como produtor ou, quando muito, o de mero distribuidor de verbas. Os planos e estratégias das políticas públicas para essa área, em todas as esferas de governo, quando existem, são difusos e não interpretáveis. Raras vezes a cultura é entendida, como deveria ser, também como um importante eixo dotado de atributos para fazer parte do desenvolvimento econômico, sem que isso represente uma concessão às leis do mercado. Assim, quando não há desmando e autoritarismo, há omissão.

A complexidade da cidade moderna exige uma boa dose de ousadia e sensibilidade para entender sua cultura, reinventar formas de auscultar suas aspirações, reconhecê-las, medir a temperatura de sua criatividade e facilitar, através da multiplicação de todas as condições possíveis, a prática cultural, ampla e descentralizada.

No caso de nossa região, caldeirão de culturas emigrantes e migrantes, que enfrenta um desconhecimento crucial de sua própria história, tem nos faltado a ousadia de inserir, não só na esfera municipal, mas na agenda regional, uma discussão permanente das questões da cultura bem como – ousadia maior – criar indicadores qualitativos para o estabelecimento das ações culturais. Tímida e raramente os assuntos da cultura ocupam a pauta de instituições como a Câmara Regional do ABC e o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos, instâncias apropriadas por onde a discussão e a efetiva prática de ações conjuntas nas sete cidades deveria passar.

As questões do imaginário e das utopias (falo aqui das utopias relacionadas à dimensão humana) devem, sim, fazer parte da pauta regional por mais “imponderáveis” que possam parecer a alguns. Considerando-se que a própria questão da regionalidade ainda é uma abstração para boa parte de nossos administradores públicos, pode-se ter uma idéia de como esses itens passam ao largo das preocupações e decisões administrativas.

Já se faz tempo, portanto, de encontrarmos juntos – sociedade e administrações públicas – formas políticas ideais para que o Estado possa estabelecer relações com a cultura da forma mais legítima, inteligente e eficaz possível.

Para isso, pode-se começar estabelecendo uma qualidade mínima e permanente de comunicação com a comunidade, não só para que a ação cultural seja respaldada nos anseios e prioridades da sociedade, mas que também esteja articulada a políticas públicas que tenham sempre em vista um processo de permanência e continuidade. Incentivar a organização da comunidade cultural, divulgando incansavelmente os mecanismos de participação instituídos (Conselho de Cultura, FAC, Leis de Incentivos), é parte do processo de formar cidadãos críticos para o qual o poder público tem obrigação de contribuir (e a escola tem aí um importante papel).

Será preciso ter ousadia para escrever um novo roteiro, com ações que possam ir além do mero preenchimento de agenda ou gastança em efemérides cívicas de duvidoso “caráter popular” mas que, na verdade, apenas reproduzem a mesmice do chamado mercado do entretenimento o qual, diga-se, não pode ser confundido com as causas da cultura. O cultivo da utopia que admite a criatividade, as diferenças e outras possibilidades é, sobretudo, uma decisão cultural que precisamos buscar a qualquer custo, uma revolução que deve passar pelo intelecto e pela vontade.

Dalila Teles Veras é poeta, ensaísta e dona da livraria e editora Alpharrabio.



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