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A divina tragédia humana
Rodolfo de Souza
08/11/2018 | 07:00
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A menina do Iêmen morreu. Aquela da foto que abalou o mundo, sobretudo as Nações Unidas. Ainda que só tenha abalado, logicamente. Sua imagem passou mesmo como um vendaval, e se foi, como todo vendaval se vai. Caiu no esquecimento como cai toda a tragédia que não diz respeito a ninguém, somente às vítimas. E as autoridades... 

Gosto em especial deste termo ‘autoridades’. Tem como definição mais acertada o retrato de um ser que habita soberano um plano bem acima deste em que mortais comuns se debatem na expectativa de dias melhores. Cabe àqueles, ainda, decidir sobre a vida destes, razão pela qual determinaram que a menina do Iêmen tinha que morrer de fome, lentamente.

E resistiu o que pôde, a pobre, até sucumbir à desnutrição cruel, que a encaminhou à salvação que talvez desejasse intimamente. Se é que tinha consciência de seu estado, se é que a precariedade de sua saúde lhe tivesse permitido elaborar pensamento qualquer. 

Talvez um suspiro de alívio tenha comparecido no leito daquela frágil criatura no momento derradeiro em que ela sentiu no rosto a brisa da morte, que soprou benfazeja e a retirou de um mundo para o qual definitivamente não nascera.

Criada em meio a uma guerra insana, como todas as guerras são, a menina não teve a menor chance de viver como uma criança comum. Não as de seu país, que são como ela, mas de outros lugares, tal qual este sobre o qual depositamos todo o nosso imenso amor varonil. E a imagem da garota, literalmente pele e ossos, que me chegou pela internet, foi de assustar, e me propôs refletir um pouco acerca das circunstâncias que submeteram aquela criança a tamanha violência. 

Logo desisti. Pus-me, então, a imaginar que nem a tecnologia que criou esta mesma internet e muito mais é capaz de deter a fúria do ser humano que sujeita seu semelhante aos rigores da fome, só para se manter no poder, ou para tomá-lo. Usa, para tanto, a tecnologia que é fruto de sua mente superior, que também promove a guerra e a morte por atacado, e usa seus inventos, cada vez mais sofisticados, para lançar mão de artifícios que conduzem o outro à desgraça, sem que este tenha cometido crime algum, além de existir. Meio difícil entender isso, concordo.

Quantas taças de champanhe são erguidas enquanto morrem ou fogem aos milhares pessoas que poderiam desfrutar do seu lar, comendo do alimento que é justo que tenha na mesa. Mas os senhores da Terra, a quem cabe decidir o seu destino, não desejam que vivam e que usufruam desse mundo que aparentemente teria sido concebido para todos.

Difícil nessas horas não se lembrar das chamadas teorias da conspiração. Ando até propenso a acreditar que não são assim de todo infundadas, como querem alguns. Afinal, a elite do mundo considera a pobreza uma doença e, ao invés de buscar a cura dos doentes, prefere eliminá-los. Parece até que aprecia essa convivência com a miséria, uma forma de garantir o predomínio da superioridade sobre outros de sua espécie.

Mas é preciso entender isso, ou engolir. Até porque, as mídias tratam as tragédias humanas como assunto banal, justamente por ser corriqueiro e fazer parte da história da humanidade, embora se saiba que um pouquinho de vontade política já seria suficiente para pôr fim a tamanho descalabro. Mas aí já é pedir demais!




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