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Rinaldo de Fernandes lança antologia Contos Cruéis
Por Ricardo Ditchun
Do Diário do Grande ABC
06/03/2006 | 07:59
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A crueldade grassa. Desde sempre. Em sua existência, um sujeito pode até não ter experimentado formas profundas de amor, carinho, amizade, gratidão e alegria. Mas esse mesmo indivíduo certamente já testemunhou ou sentiu algum tipo de crueldade. Ser vítima ou agente da impiedade é uma condição tão corriqueira que não por menos ela é ingrediente indispensável para ficcionistas em geral. Teatro, literatura, cinema, artes visuais e peças televisivas mais ou menos inteligentes deitam e rolam no mar da crueza. Por causa dele, são tecidas tramas de interesse atemporal e universal. Atiçam nossa curiosidade mórbida e fazem aflorar pulsões.

No âmbito da literatura brasileira, especificamente na casa prosa de ficção de nossa estética da linguagem, as histórias cruéis, bem como suas variáveis agressivas, contundentes, assustadoras, violentas e chocantes, são generosas em termos de quantidade e de qualidade. Rinaldo de Fernandes, doutorado em Letras, escritor e crítico, encarou a difícil tarefa de compor uma antologia de significativas histórias curtas brasileiras, contemporâneas, e o resultado acaba de chegar às livrarias. É Contos Cruéis (Geração Editorial, 420 págs., R$ 48). É diversão – sem juízo de valor – garantida.

Adjetivar como difícil o trabalho de Fernandes não é só figura de imagem. Imagine obter, entre tantos importantes autores brasileiros, 47 nomes e, destes, muitas vezes em meio a obras vastas e consagradas, igual número de contos que lhes sejam representativos. Por exemplo, pinçar do manancial de Rubem Fonseca, apenas um conto. Outro, solitário, de Lygia Fagundes Telles; mais um, isolado, de Dalton Trevisan; de Caio Fernando Abreu, afastado da seminal família literária do gaúcho morto em 1996, somente Sargento Garcia; de Nélida Piñon, só um O Jardim das Oliveiras. Complicado.

Houve, ainda, a dificuldade de selecionar trabalhos dos chamados emergentes: Fernando Bonassi, Cíntia Moscovich, Marçal Aquino, Marcelo Coelho, Joca Reiners Terron. E isso tudo sem contar as ausências. Nomes como João Antonio e Marcelo Mirisola, só para citar dois, respectivamente cabíveis nas prateleiras de consagrados e emergentes.

Contos Cruéis, ao final da leitura, evidencia a abordagem da violência em seus vieses físico e psicológico. O organizador Fernandes explica: "A violência física é muito explorada pela mídia e está em toda parte, entre policiais e traficantes, no trânsito, nos lares, nos botecos etc. A violência psicológica tem a ver com a palavra, com o discurso que desqualifica, fere ou submete o outro. É comum onde há hierarquia, em que o indivíduo se sente mais qualificado ou poderoso que o outro."

A essência urbana dos contos, portanto, é outra característica evidente. A banalização da violência e o aumento da pobreza nesse meio ao longo dos últimos anos são motivos, óbvio, de interesse para os escritores. Um certo balanço sociológico-literário, então, não deve ser encarado como absurdo pelo leitor. É a velha história da vida caótica imitando a arte e vice-versa.

Além das histórias, e do festival estilístico que elas contêm, Contos Cruéis apresenta uma breve biografia, com foto, de cada escritor lembrado pelo organizador, que também assina uma nota introdutória curta, mas precisa, e um conto, o instigante – e de final arrepiante – Duas Margens. O prefácio, indispensável, é de Linaldo Guedes. O livro é para comprar, ler com calma e emprestar, sobretudo a apreciadores do gênero conto.

Em tempo: uma das acepções para o adjetivo ímpio, do latim impiu, é incrédulo, herege, falta de fé; ou seja, denota ou envolve impiedade, ou desumanidade, ou crueldade.

Trechos

Morte aos desempregados atrapalhados, aos assalariados desesperados, aos empreendedores ufanistas. Morte aos vendidos, aos comprados, aos perdidos! Morte a quem suspende os juros para vê-los caírem devagarinho, enganando as prestações alheias. Morte aos que devem e não pagam e aos que pagam direitinho, fazendo lucrar os usurários empalados de dinheiro. Morte aos aleijados que começam a andar repentinamente! Morte às gordas que emagrecem milagrosamente! Morte aos que pedem, aos que reclamam e lamentam. Morte aos que páram para ver os circos se incendiarem, aos que refrescam essas chamas, aos que deitam-se na fama. Morte aos livrinhos sagrados de auto-ajuda, à psicanálise do esquecimento e aos juízos que se espalham em prisões e linchamentos. Morte aos Deuses oniscientes, ignorantes e inclementes.

(Terrorismo, de Fernando Bonassi)

Muito perto. Cheiro de suor de gente e cavalo, bosta quente, alfafa, cigarro e brilhantina. Sem mover a cabeça, senti seus olhos de cobra percorrendo meu corpo inteiro, vagarosamente. Leão entediado, general espartano, tão minucioso que podia descobrir a cicatriz de arame farpado escondida na minha coxa direita, os três pontos de uma pedrada, entre os cabelos, e pequenas marcas, mesmo as que eu desconhecia, todas as verrugas e os sinais mais secretos da minha pele. Moveu o cigarro com os dentes. A brasa quente passou raspando junto à minha face. O mamilo do peito saliente roçou meu ombro. Voltei a estremecer.

  – Mocinho delicado, hein? É daqueles bem-educados, é? Se te pego num cortado brabo, tu vai ver o que é bom pra tosse, perobão.

(Sargento Garcia, 1987, de Caio Fernando Abreu)

O suor da minha camisa não mitigava a sede. Ainda que eu pedisse, não me deixariam beber de um líquido envenenado pelo temor e o delírio verbal. O jogo custava-me vida e honra, mas era o preço a pagar-se para ganhá-lo de volta. Acaso pensavam que me podiam arrancar a vida porque me faltaria a coragem de usar uma vez mais as palavras que me matando por dentro abriam-me a porta para esta mesma vida?

Eu sei que a palavra é a vida. Mas, o que dizer dela quando se distancia do arrebato popular e perde a função? Eu sei que a vida prova-se com a palavra, mas quando nos é ela extraída à força e ainda assim a vida nos fica, não é a vida o único tesouro com que se recomeça a viver? É o que venho fazendo, Zé, diariamente averiguo o nível da água dessa minha existência.

(O Jardim das Oliveiras, 1980, de Nélida Piñon)




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