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'O cartel político se mantém inalterado', denuncia ex-dirigente da Fifa
10/03/2018 | 08:10
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Nem as prisões de dirigentes nos Estados Unidos, nem a eleição de novos cartolas mudou a Fifa e o futebol. Quem faz o alerta é o português Miguel Maduro. Ele era o responsável pelo Comitê de Governabilidade, criado justamente para colocar ordem na entidade abalada pela corrupção, organizar e fiscalizar eleições e estabelecer regras sobre quem poderia fazer parte da gestão.

Mas durou apenas alguns meses no cargo, depois de ver sua independência minada pela cúpula da entidade, que o teria pressionado a tomar certas decisões contra as próprias regras da Fifa.

No ano passado, ele prestou depoimento diante do Parlamento Britânico e revelou como, para proteger o governo russo e de tentar evitar qualquer punição contra representantes do Kremlin, Vitaly Mutko, a direção da Fifa o pressionou.

O vice-primeiro-ministro da Rússia era o organizador da Copa de 2018, Mas foi suspenso de forma vitalícia pelo Comitê Olímpico Internacional de todos os Jogos Olímpicos por ser o organizador do doping de seus atletas.

Agora, Maduro revela novos detalhes de como foi alvo de pressões, inclusive da Conmebol, e insiste que pouco mudou desde a ação do FBI. Ele ainda conta como as eleições já estavam definidas antes mesmo de os dirigentes irem ao Congresso para votar.

O ex-dirigente, que é professor de direito nas maiores universidades europeias, ainda revela que propôs uma regra pela qual federações nacionais não poderiam ter em sua direção membros do governo e parlamentares. Mas isso foi rejeitado pela Fifa.

Em que situação ocorreram as pressões contra o seu trabalho na Fifa? Era algo explicito?

Ocorriam de duas formas. Havia uma pressão mais ou menos implícita, que ocorria normalmente quando publicávamos as decisões que tomávamos e que nos indicavam que elas haviam gerado muita insatisfação em determinadas federações ou pessoas. Tivemos casos que, porém, em que foi diretamente comunicado pelas pessoas no comando que as decisões não eram boas e deveriam mudar. Em alguns casos, esses recados eram dados antes mesmo de tomarmos uma decisão final.

Em que caso isso ocorreu?

No caso do senhor Mutko. Foi o próprio presidente (da Fifa, Gianni Infantino) que tentou me convencer a declarar o russo como elegível para o Conselho da Fifa, apesar de nós entendermos que isso violava as regras.

O que era alegado?

Sempre citavam a repercussão política pelo fato de que a Rússia organizar a próxima Copa. Minha posição era de que essa consideração não poderia guiar o trabalho de um comitê que eu presidia e que teoricamente era independente. Eu precisava aplicar as regras de forma igual a todos. Se abríssemos uma exceção, era o fim da credibilidade de qualquer sistema independente de aplicação das regras. Esse é o problema da Fifa. Eles não se importam em ter as regras certas, desde que elas sejam aplicadas às pessoas que considerem que seja oportuno. Isso é o contrário de uma comunidade de direito. Regras precisam ser aplicados de forma igual. Considerações de ordem política não podem determinar a aplicação das regras.

O que o senhor viu foi uma orientação política das decisões da Fifa sobre a Rússia?

Essa era a justificativa que davam. Nós tínhamos de pensar num impacto na Copa do Mundo. Também disseram que a própria sobrevivência de Infantino estaria em jogo. Os russos agiriam de forma a afetar a presidência. Isso não é algo que um órgão judicial precisa olhar.

Quais eram os pontos que vocês avaliariam sobre Mutko?

O que tínhamos de ver, em primeiro lugar, é se a presença de um vice-primeiro-ministro russo violaria a regra da Fifa de que teria de ser neutra em relação aos governos. Foi com nessa base que o excluímos. Nem sequer chegamos ao ponto de avaliar sobre seu eventual papel no doping de estado da Rússia. Para nós, era chocante. A Fifa, que muitas vezes ameaça excluir federações nacionais por suposta ingerência de governos ou por conta de uma carta escrita pelo governo, estava disposta a aceitar em seu Conselho um membro do governo russo. Isso é um absurdo. Alias, como aceitou outros. Chegamos a sugerir que nenhum membro de governo fosse membro de uma federação nacional.

Parlamentares tampouco?

Não era desejável. Mas indicamos que, por enquanto naquele momento, seria autorizado. Já pensávamos, mesmo assim, ampliar a sugestão inicial para também em seguida incluir parlamentares.

E o que ocorreu com essa sugestão?

A secretaria-geral da Fifa jamais comunicou às federações nacionais. A Fifa usa o princípio da não-ingerência governamental quando lhe é conveniente. Quando não é, não usa. As regras existem. Mas não são aplicadas. Apenas quando politicamente são convenientes. Isso não pode ser. Um dos problemas das associações esportivas é de que ou são tratadas como entidades privadas ou como multinacionais. Mas elas tem uma dimensão publica. Elas tem um poder de regulação em sua área de atuação. O esporte é uma área de importante relevância social e que representa 2% do PIB mundial. Mas está sujeito a uma regulação privada, sem escrutínio publico. Por isso, os órgãos políticos da Fifa precisam ser controlados por órgãos independentes.

Como o senhor saiu?

Quando tomamos decisões que desagradavam, nosso mandato não foi renovado. Infantino tinha me dito inicialmente que era para ficar.

O senhor assumiu depois das prisões de cartolas pelo FBI. Como era o clima interno?

Começamos nossos trabalhos em 2016. Naquela altura, Infantino nos disse que queria fazer as coisas de forma diferente. Mas eles não estava conscientes do que isso implicava. E quando começou a aparecer os primeiros conflitos entre as regras e os interesses políticos com dirigentes importantes, um dilema importante passou a existir para Infantino. Ou era a nossa sobrevivência ou era a dele.

Mas o que isso demonstra?

Isso mostra que o problema é sistêmico. Que não se resolve apenas mudando a presidência da Fifa. É algo sistêmico do futebol e do modelo da Fifa. Logo no primeiro congresso regional que fomos fiscalizar, tivemos um conflito muito grande que levou ao cancelamento dessas eleições. Foi o caso da Confederação Asiática (AFC). Rejeitamos a participação de um candidato do Catar, que havia se recusado a colaborar nas investigações sobre 2022. Isso não foi bem aceito e nos disseram claramente que era inaceitável. O outro problema é que as regras daquela confederação discriminada as mulheres. Quando fomos nos queixar, me foi dito claramente que não poderiam mudar as regras, alegando que as vagas já estavam definidas.

Antes das eleições?

Antes mesmo das eleições as posições na Confederação Asiática de Futebol (AFC, na sigla em inglês) já estavam definidas. Um dos dirigentes da AFC e que era o responsável por organizar a eleição me disse que não poderiam mudar as regras sobre as mulheres por conta de as vagas já estarem designadas e distribuídas. Extraordinário.

Como era a situação na Conmebol?

Em 2017, eles realizaram eleições para escolher quem os representaria na Fifa para as vagas que estavam ainda abertas. Mas as eleições foram chamadas em um prazo muito mais curto que estava previsto. Fizeram o anúncio das eleições sem ser apreciadas pelas regras da Fifa. Identificamos essa irregularidade e indicamos que não poderiam realizar a eleição por não cumprir o prazo. Alejandro Domingues (presidente da Conmebol) chegou a me telefonar para dizer que jamais aceitaria nossa decisão e que iria adiante com o voto. Recebi muitas chamadas de dentro da Fifa. Acabamos aceitando que a eleição fosse realizada se cada uma das federações nacionais nos escrevessem dizendo que tiveram prazo suficiente para apresentar candidatos.

Diante de tudo isso que o senhor conta, mudou algo na Fifa ou na gestão do futebol depois das prisões dos cartolas pelo FBI?

Não serve muito apanhar algumas maçãs podres se não tocamos na árvore que produz essas maçãs. Esse é o problema fundamental da Fifa. O problema é sistêmico, é da cultura do futebol, é do cartel político que domina a Fifa e o futebol. Não por pegar algumas pessoas que os problemas desaparecem. A liderança pode até mudar. Mas se a estrutura é a mesma, o cartel político fica inalterado. Só se houver um organismo internacional para supervisionar isso tudo é que vai mudar. A Fifa não responde perante aos torcedores, nem aos governos e nem à imprensa. Mas responde apenas a esse cartel político e esse cartel político do futebol não acabou e se mantém inalterado.




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