Setecidades Titulo Especial
Eles não têm o direito
Yara Ferraz
do Diário do Grande ABC
03/12/2017 | 07:07
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Nario Barbosa/DGABC


O barulho dos disparos ainda ecoa na viela Sete, no Parque João Ramalho, em Santo André, local onde a vida do adolescente Luan Gabriel Nogueira de Souza, 14 anos, foi interrompida precocemente por um tiro na cabeça no momento em que ele conversava com um amigo, exatamente há um mês. Ansioso e impaciente como a maioria dos jovens de sua idade, Luan tinha saído de casa minutos antes para ir a um mercadinho comprar bolachas. Não quis esperar a mãe, a cozinheira Maria Madalena Costa Ribeiro, 36, terminar o o bife à parmegiana que ela preparava para o almoço daquele que ficará marcado para sempre como o domingo mais trágico da família. Luan não chegou a comprar as bolachas nem voltou para comer o seu prato predileto.

O jovem Luan entra para as estatísticas de mortes provocadas por intervenções policiais no Grande ABC, que neste ano registraram 77 vítimas entre janeiro e outubro, número 67,39% maior do que em 2016, quando os policiais mataram 46 pessoas – leia mais informações ao lado.

Maria não voltou a passar pela viela para cortar caminho, e provavelmente nunca mais usará aquela travessa que dá acesso à avenida principal do bairro. Ainda não está em condições de ver o local onde o filho foi morto em uma ação policial que ela considera desastrada. “Eles não têm o direito de tirar a vida de ninguém. Eu não vou descansar até que a justiça seja feita. Nem que leve mais 36 anos”, disse, emocionada.

O rosto de Maria é estampado por intensa tristeza, que está presente nos pequenos gestos. É perceptível até mesmo em coisas simples do dia a dia, como passar um café sem pensar em Luan. A viúva é mãe de mais dois filhos e avó de dois netos, nos quais se ampara para seguir em frente. “A tristeza, a saudade e a angústia só pioram a cada dia. Não deixo de pensar nele um minuto. Tem dias que ainda espero ele entrar pela porta.”

O jovem de 14 anos (recém-completados no dia 7 de outubro) tinha uma vida toda pela frente. O principal sonho era cursar Medicina e se formar como médico para conseguir dar uma vida melhor para toda a família, que hoje mora em casa com apenas dois cômodos. Era por isso que a mãe, além do emprego de cozinheira, trabalhava como diarista em duas casas. “Ele não via a hora de se formar na escola. Eu dizia que ele ia entrar na faculdade, porque nós íamos juntar dinheiro para que ele conseguisse estudar e ser médico.”

A ferida, ainda muito recente para cicatrizar de vez, foi reaberta quando ela conseguiu ler as palavras escritas pelo filho. Na última semana, dona Maria foi até a escola do bairro, onde ele cursava o 8º ano do Ensino Fundamental. A professora de Português lhe entregou uma redação, cujo tema era O Que É Felicidade Para Você? Para Luan, a resposta foi “a minha maior felicidade é ver minha família bem e alegre. Fico muito feliz só de ver, porque foi com eles que eu aprendi o que é amar de verdade”, dizia no texto.

O irmão Lucas Nogueira de Souza, 23, saiu do emprego de vendedor para se dedicar à mãe. Com carinho, ele se lembra do irmão caçula. “Eu que trocava as fraldas dele para a minha mãe trabalhar. Digo que era mais apegado ao meu irmão do que aos meus filhos.”

A família pretende entrar com ação na Justiça contra o Estado. “Sei que nada vai trazer o meu filho de volta, mas espero que pessoas assim sejam tiradas das ruas. Policiais preparados devem atuar para evitar que outras famílias passem por essa tragédia.” O caso é investigado pelo 2º DP (Camilópolis) e acompanhado pela Corregedoria da PM (Polícia Militar) e ouvidoria das polícias. Os dois policiais que atuaram na ocorrência estão afastados.

DOIS ANOS DEPOIS
Para a dona de casa Vanessa Cavalcanti de Assunção Alves, 35, e seus três filhos, a rotina também sofreu um grande abalo após a perda do marido, José Erlanio Freires Alves, 36. Ele estava a caminho do trabalho, no Jardim das Maravilhas, em Santo André, quando foi atingido por disparos de PMs que atuavam em perseguição, em janeiro do ano passado.

Quase dois anos depois, a família ainda tenta seguir em frente. “Todos os dias lembramos dele. Não vamos esquecer nunca”, disse Vanessa. Conforme a SSP, o PM envolvido responde a processo administrativo e está afastado das atividades operacionais.

Para especialistas, números são altos
Conforme os dados levantados pelo Diário, por meio do portal da SSP (Secretaria da Segurança Pública) Transparência, de janeiro a outubro deste ano houve 77 mortes por intervenção policial. Os maiores números de registros estão em Santo André e São Bernardo, cada uma com 26 casos. Mauá vem em seguida, com 12, à frente de Diadema, com dez; Ribeirão Pires, com dois registros, e São Caetano, com apenas um.

Os dados, que superam em 67,39% o número de vítimas em relação ao ano passado, são vistos como preocupantes para os especialistas. Para o ouvidor das polícias do Estado de São Paulo, Julio César Neves, a alta é expressiva. “Lutamos para que esses números caiam. O que está acontecendo no Grande ABC traz grande preocupação. Isso é causado por falta de controle por parte de várias instituições, como a própria ouvidoria, e o comando da PM. É necessário formar uma comissão da letalidade, que já existiu no Estado e foi dissolvida há sete anos. Ela reunia vários órgãos, que semanalmente discutiam os casos de forma transparente.”

O especialista e ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho classifica mortes como a do adolescente Luan como absurdas, e acredita que o aumento é preocupante. “Nesta posição, uma análise deve ser feita. Com mais treinamento e redistribuição dos agentes.”

“Não temos uma polícia eficiente, temos uma polícia que mata muito, mas que pouco evita e esclarece crimes. Crianças, adolescentes e jovens que vivem em comunidades pobres e periféricas temem a polícia porque são as potenciais vítimas dos maus policiais”, opinou o coordenador da comissão da criança e do adolescente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), Ariel de Castro Alves.

Questionada, a SSP informou que desenvolve ações para reduzir a letalidade policial. “Nos primeiros dez meses do ano, 3.047 criminosos entraram em confronto com policiais, em 1.146 ocorrências. Do total de criminosos, 18% morreram, ou seja, em cerca de 82% dos confrontos, mesmo estando os policiais e a sociedade em iminente e real risco de morte, a vida dos criminosos também foi preservada”, afirmou, em nota.

Todos os casos de morte decorrente de oposição à intervenção Policial são investigados com a participação dos respectivos corregedorias e comandos das equipes do IML (Instituto Médico-Legal) e do IC (Instituto de Criminalística), além do Ministério Público. “As investigações sobre esses casos só são arquivadas por determinação da Promotoria ou da Justiça.”<TL>YF 




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