Cotidiano Titulo
Balada
Rodolfo de Souza
24/11/2016 | 07:00
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A menina da favela vê sua barriga crescer. Não tem a menor ideia do momento em que ocorrera o deslize, tampouco de quem partira o sêmen que a fecundara. Lá na balada, as garotas são de todos e de ninguém. Tudo é festa, afinal, e os embalos promovidos pela música ruidosa, pelas drogas e pelo álcool, conduzem à ideia de que tudo é possível, até entregar sua intimidade a um ou a vários desconhecidos que se lambuzam, se fartam e se vão.

Esta é a realidade que lhe fora apresentada um dia e com a qual se habituara e ganhara afinidade. Herança materna, tudo indica, esse gosto pela futilidade e pela imundície das vielas e dos becos.

Vive, a garota, num casebre apertado, com a mãe, dois irmãos menores e um pai, embora a adolescência lhe faça suspeitar de que aquele homem que divide o leito com a velha, não tivera participação na origem de sua pessoa. Até porque, nem lhe ficara muito claro o papel do sujeito em sua vida. De qualquer forma, encara-o como pai, uma vez que ouvira em algum lugar que pai e mãe habitam a mesma casa e deitam-se na mesma cama. E, mesmo que venha a tomar ciência da realidade, não deixará de considerá-lo pai, sob pena de perder o sustento, já que ele é operário e a comida não iria para a sua mesa se ele se fosse. Ainda assim, sua mãe, carregada da petulância tão peculiar em seu meio, não esconde o fato de que a presença do homem em sua vida deve-se unicamente a isso. Ele finge não entender. Indivíduo de uma passividade doentia, aquele. Talvez porque também não tenha escolha. Mulher de rua que é a sua, ela nem cuidado toma para evitar que o companheiro saiba das suas aventuras. Considera-o um verme e pouco lhe importa seus sentimentos ou se chega a ter algum.

A menina da favela, dotada da mesma sensibilidade, crescera assim, num ambiente avesso ao bom gosto e à inteligência refinada. Não teria mesmo como aprender a respeito de algo que não conhecera, que nunca vira. Toda sua bagagem cultural se limita, pois, às coisas do seu meio e aos valores que cultivara por intermédio dele. Por isso seu universo é assim, restrito à percepção do que lhe vai ao redor, e só. Sua linguagem é precária, porque precária é a sua leitura. Visão ampla de mundo e senso crítico são características que lhe foram negadas pela ignorância atroz que também não lhe permite experimentar sensações outras, oriundas do convívio com as artes, com os livros e com as mentes, qualquer coisa mais esclarecidas, que tanto têm a contribuir para dar mais de sentido a esta vida.

E agora, não bastasse todo o infortúnio em que fora lançada desde o útero materno, a menina está prenha. Seu bebê também há de crescer num meio para o qual é negado o privilégio de voar a altitudes que não se consegue alcançar ingerindo porcarias. O conhecimento que repudia as drogas e a vulgaridade desmedida, é que leva o ser humano a voos tão altos. Pena que ela não saiba. Pena que ela não possa ser arrebatada dali. Até porque, somente pelo seu esforço, a garota poderia deixar aquele ambiente que aprecia sobremaneira. Aprecia porque não conhece outro. Porque não faz parte do seu entendimento aquilo que difere do seu mundo, o universo para o qual fora criada e que agora já afia as garras para receber o seu rebento.




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