Cotidiano Titulo Tempo
A Chuva
Por Rodolfo de Souza
10/11/2016 | 07:00
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A chuva cai. Indiferente a todos os acontecimentos históricos ou recentes, felizes ou não, ela cai. Alheia à opinião do homem sobre isso e aquilo, à sua política, à sua determinação em promover a injustiça e a angústia, ela despenca volumosa, preenchendo o vazio do meu peito. E o vento, este formidável, ainda comparece para dar valiosa contribuição e deixar no coração este sentimento de fascínio pelo poder que se agiganta diante da presença humana. Entre trovões e relâmpagos que clareiam a noite, ela segue varrendo com força ruas e telhados, lavando e levando de roldão coisas, árvores e gente. Ela não se importa. Ela é soberana. Cai como se pretendesse mostrar ao mundo que nele não há quem possa deter o seu ímpeto que despreza leis, mazelas e emendas.

O vigor da chuva pode ser sentido por toda parte neste momento noturno e soturno em que, por instantes, me esqueço dos entraves da vida, dos passeios, do amor para logo mais... Minha atenção se detém unicamente na sua grandeza e força que, por vezes, me confundem. A coisa é tão poderosa que deixa a impressão de que me atira na cara todo o granizo de uma existência repleta dele. Mas não, é somente água que desaba pesada. Precioso líquido vital dançando e cantando para a noite da minha cidade!

Ao volante sigo, pois, observando com todo o cuidado a tormenta que bate forte, castigando, fustigando e profanando a terra das pessoas que se prostram diante da sua impávida figura. Sua voz assustadora se faz ouvir na lataria e no vidro dianteiro que segue intrépido, abrindo caminho no aguaceiro.

O vidro, que é matéria criada pela presença de espírito humana, também não se importa. Segue executando tranquilo o seu trabalho. Sossega porque não é gente e desconhece o seu papel e a sua fragilidade. Diferente do ser humano calado que, nessas horas, sente apreensão diante da ameaça que se lhe afigura iminente, fora de controle. Tudo, então, fica esquecido num canto qualquer de sua memória. Até o temor pela eleição da megalomania em império distante é deixado de lado na hora da borrasca que castiga e ruge. Afinal, o ser humano, em momentos assim, só tem olhar e ouvidos para ela.

E a cidade, antes congestionada, parece agora deserta. Todos se escondem com medo do açoite gelado. E se apavoram com a enchente daninha que aspira tudo levar, com o frágil barranco que pode derreter e carregar moradias, com as telhas e demais objetos que ameaçam levantar voo e trilhar rumos incertos nesta vida de incertezas.

Sigo lentamente, percorrendo o asfalto que já acumula considerável volume de água. Por certo que a violência com que se dá o fenômeno suscita sentimento perturbador e também esse fascínio que me vai na alma.

Paradoxo se torna a calma excepcionalmente intrigante que vivo e presencio. Apesar de que em alguns lugares transformadores já sucumbem ao aguaceiro e explodem. Nas redondezas tudo se apaga. Então, é só escuridão, barulho ensurdecedor e aguaceiro que enche de gratidão reservatórios e gente que, a despeito do medo, se alivia diante da consciência de sua condição líquida.




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