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Duas histórias, um bairro e muito frio

Com a chegada do inverno, moradores de rua procuram lugares para se abrigar

Ari Paleta
01/06/2015 | 07:00
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Ari Paleta/DGABC


Com a proximidade do inverno (que começa no dia 21 de junho), muitos moradores de rua da região procuram desesperadamente se refugiar para fugir das baixas temperaturas, seja debaixo de pontes e viadutos ou nos albergues. A equipe do Diário esteve em dois locais no bairro Campestre, em Santo André, embaixo dos viadutos Castelo Branco e Dom Pedro II, e conheceu histórias tristes de duas pessoas que, após passarem por grandes desilusões, contaram como fazem para tentar, ao máximo, driblar o frio, já que da rua não veem escapatória.

 Josefa Bernardo da Silva, 55 anos, habita hoje espaço em frente à alça de acesso à Avenida Prestes Maia. Encara rotina diária de álcool e crack para lidar com o vento gelado e as madrugadas frias. Uso que, às vezes, também é feito à luz do dia. Moradora de Santo André desde os 14 anos, Josefa, conhecida pelos amigos como Terra, nasceu na Paraíba e veio para São Paulo com apenas 9 anos, quando passou a morar com os tios. Alguns anos depois começou seu calvário, e a traição da vida veio daquele em quem depositava a confiança paterna: o tio que a criava se aproveitou de sua inocência e abusou sexualmente dela. Com medo, contou para a tia, que a repreendeu e pediu para que se esquecesse disso, pois senão iria estragar o casamento.

Foi assim que, decidida a não sofrer mais abusos, resolveu ir embora de casa e parou em Santo André, onde logo conheceu seu hoje ex-marido, com quem teve um filho. Questionada sobre o relacionamento e a criança, ela ficou primeiramente muito emocionada e, em seguida, nervosa, quis encerrar a conversa. Ao topar mudar de assunto, revelou que se envolveu com o crime e sempre participou de assaltos grandes, com isso, juntou dinheiro e comprou uma pequena chácara em Arthur Nogueira, interior paulista.

Apesar da conquista, entretanto, ela não deixou a criminalidade e terminou presa. Foi quando surgiu a segunda traição em sua vida. Como não tinha trabalho para colocar a chácara em seu nome, resolveu passar a propriedade para sua sogra, que aproveitou a prisão para vender o local e sumir no mundo com o filho de Terra. “Não recebi nenhuma visita enquanto estive presa, ninguém foi ao menos saber se eu estava viva. Minha sogra acabou com a minha vida e foi embora.”

Quando saiu da cadeia, não tinha nada. Só restava uma saída, segundo ela: voltar a roubar. Esse ciclo continuou e gerou outras prisões. Na última, permaneceu reclusa por oito anos e, quando saiu, não tinha mais onde morar. Foi quando ocupou e começou a cuidar do seu novo lar, embaixo do Viaduto Castelo Branco. Atualmente com dois anos de liberdade, ela admite que, para aguentar as noites frias, só com a ajuda de álcool e crack. “Consigo drogas com os amigos das antigas. É o que ajuda a ver o mundo passar”, justifica. “Hoje, para tomar banho, uso água fria e uma canequinha. Para comer, sempre tem gente que entrega comida na janta, e no almoço nos viramos”.

São Paulina, Terra conta que essa é uma das poucas paixões que ainda preserva, já que na rua tentou casar novamente, mas não deu certo, pois não tem como namorar ao ar livre. Os amigos que moram no mesmo local afirmam que ela cuida de todos e tenta manter o mínimo de ordem, varrendo o chão e colocando quadros nos muros do elevado. Questionada sobre os motivos que a levam a auxiliar todos que chegam por ali, diz ter um sonho: “Se puder ajudo mesmo quem não gosta de mim, não quero ver nem meu pior inimigo passar o que eu passo.”

Dificuldades
A apenas alguns metros do lar de Terra, embaixo do viaduto Dom Pedro II, há outra história cheia de tragédias. Ali vive Armando Carrilio, 50, conhecido também como Mãozinha. Ele diz ter conseguido se livrar das drogas, mas não do álcool, principalmente para lidar com o frio.

Nascido em Santo André, passou alguns anos morando em Santo Amaro, na Capital, onde se casou e teve dois filhos. O eletricista de automóveis, que prestava serviço em oficina no mesmo bairro, não imaginava que o rumo da sua vida mudaria tragicamente quando, em acidente em 1996, perdeu o movimento e partes de nove dedos da mão, o que justifica o seu apelido.

Mãozinha, até então apenas Carrilio, passou alguns dias internado e, quando voltou para casa, descobriu que havia sido traído pela mulher. “Me senti um estorvo na vida deles. Resolvi ir embora de casa.”

Perdido no mundo, sem ter para onde ir, acabou morando por quatro meses nas ruas andreenses até que descobriu abrigo que tinha, na época, regime interno rígido, onde viveu por mais quatro anos. “Não gostava de ficar preso e seguindo as regras de lá”, desabafa.

Ele, então, resolveu voltar para as ruas, perambulando entre um lugar e outro, até conhecer os moradores do viaduto. Lá também existem regras, conta, só que em regime aberto. Como dividem o lar, cada um cuida do que é seu. Para comer, ele também recebe doações na hora do jantar. Já no almoço, geralmente cozinha em fogaréu improvisado, com restos de móveis usados como lenha.
Batizado na igreja evangélica Assembleia de Deus, Mãozinha revela que acredita no criador, e que algumas igrejas abrem as portas para que ele possa tomar banho. Quando não consegue, usa o chuveiro da Craisa (Companhia de Abastecimento de Santo André). “Sonho em construir uma nova família, com mulher e filhos, já que no primeiro casamento não deu certo. Tenho minha mãe, mas não peço ajuda para ela e nem para os meus irmãos, que moram em Bauru (Interior), Santo André e Natal (Rio Grande do Norte)”.

Mãozinha, que trabalha cuidando dos carros que estacionam ali, diz ter conseguido largar as drogas, mas a cachaça “é impossível de largar, pois ela ajuda a esquentar e a esquecer os problemas, que não são poucos.”

O lugar ocupado hoje pelo morador de rua é o mesmo no qual o pedreiro Márcio César da Silva, 46, viveu. No dia 17 de novembro, a equipe do Diário contou sua história. Ele havia chegado do Rio de Janeiro em busca de oportunidades profissionais melhores e, na época, disse que o seu sonho era passar as festas de fim de ano junto com a sua família. “Tenho quase todo o dinheiro da passagem e estou tirando meus documentos de novo com a ajuda do pessoal da Casa Amarela”, disse, à época.

Infelizmente, o destino do pedreiro não foi esse. Após adiar a volta, na véspera do feriado da Páscoa, se envolveu em uma discussão e foi esfaqueado. O golpe o matou. Essa foi mais uma triste coincidência na qual a vida imitou a arte, como na música do rapper Projota, em que ele conta a história do homem que não tinha nada. “O homem que não tinha nada/Encontrou outro homem que não tinha nada/Mas esse tinha uma faca/Queria o pouco que ele tinha, ou seja, nada/Na paranóia, nóia, quem não ganha te ataca.”

Santo André também é endereço de Simão Pereira da Costa, 43, morador de rua que luta para voltar para casa junto de seus familiares em Buriti Bravo, no Maranhão. Sua única exigência é levar seus companheiros, os cães Negão e Neguita. São histórias que a rua conta. Basta ter ouvidos para ouvir.

Hoje 120 pessoas dormirão na rua na cidade

Santo André tem atualmente cerca de 200 moradores em situação de rua e apenas 80 vagas em albergues noturnos. O cenário vai na contramão da famosa frase do regime castrista em Cuba, que dizia: “Hoje, 200 milhões de crianças irão dormir nas ruas, mas nenhuma é cubana.”

Hoje em Santo André 120 pessoas vão dormir na rua, já que não há lugares suficientes para se abrigarem. Mas, para a estação mais fria do ano, o Executivo prepara a Operação de Inverno, que prevê a intensificação dos serviços de abordagem usando agentes e guardas-civis municipais.

Para amenizar a falta de abrigo e o frio da população de rua, a Prefeitura lançou a campanha do agasalho na cidade. Os munícipes que tiverem em casa peças em bom estado que não usam mais podem levá-las até um dos pontos de coleta espalhados pelo município, como escolas, creches, UBSs (Unidades Básicas de Saúde), entre outros. Vale lembrar que não são aceitos apenas agasalhos. Camisetas, toalhas e cobertores também podem ser doados.(AP) 




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