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Pedofilia: imposição de um desejo único
Fred Furtado
Ciência Hoje/RJ
18/10/2010 | 07:35
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Nas últimas décadas, a atração sexual patológica por crianças e pré-adolescentes ganhou nome e deixou de ser um assunto reservado das famílias para se tornar problema social e político que afeta desde questões médicas até criminais. Chamada pedofilia, tipo de perversão sexual para a psicanálise e psiquiatria, essa doença passou a representar muito mais que uma condição médica e hoje é termo que abrange várias manifestações de violência e polui a discussão sobre o tema pela forte carga emocional que o cerca.

A quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM IV-TR, na sigla em inglês), publicação da APA (Associação Americana de Psiquiatria), define a pedofilia como parafilia, tipo de transtorno em que o prazer sexual não é obtido com a cópula, mas por meio de outra atividade ou objeto de desejo sexual. Mais especificamente, caracteriza-se por interesse sexual por crianças pré-púberes (13 anos ou menos) da parte de indivíduos com 16 anos ou mais ou que sejam pelo menos cinco anos mais velhos, sendo que esse desejo se manifesta por um período mínimo de seis meses. O diagnóstico poderia ser feito se o interesse foi levado a cabo ou se causou acentuado sofrimento ou dificuldades pessoais.

O psiquiatra e psicanalista Luís Alberto Helsinger, coordenador do curso de Teoria e Clínica da Perversão da Sociedade Brasileira de Psicanálise, explica a pedofilia sob o ângulo da psicanálise.

"O que faz desse problema uma patologia é o fato de o indivíduo só atingir o gozo, o prazer sexual única e exclusivamente por meio do objeto escolhido, o fetiche. Esse é um dado importante: aquele que sofre de perversão sexual não consegue realizar seu desejo de outra maneira que não seja com seu fetiche," afirma, acrescentando que esse objeto pode ser qualquer coisa, por exemplo, uma bota, um olhar ou uma criança, como no caso da pedofilia.

A definição é importante, pois nem todo caso de violência sexual contra crianças se enquadra na pedofilia.

"Um pai que chega bêbado em casa e estupra a própria filha não é um pedófilo se ele consegue ter relações sexuais e obter prazer com mulheres adultas", explica o psicanalista.

Na mesma linha, alguém que produza material pornográfico contendo crianças não necessariamente sofre de perversão, embora possa estar alimentando um público com a doença. Contudo, todos esses exemplos - o pai, o produtor e os clientes - hoje são criminosos perante a lei.

Perfil de um escravo
Mas o que faz alguém se tornar um pedófilo? Seria possível nascer com essa doença? Helsinger afirma que não. A pedofilia seria um problema de cunho psicológico originário de trauma ou de pressões culturais que levam a pessoa a procurar uma forma de gozo exclusivamente focada em crianças.

"Alguém que sofreu abusos na infância pode querer, como disse (o médico austríaco Sigmund) Freud (1856-1939), repetir ativamente o que sofreu passivamente. A pedofilia pode surgir também em ambientes supererotizados onde há um estado ambíguo de lei e ausência de lei, como em famílias nas quais há muitos irmãos de pais diferentes", esclarece o psicanalista.

Ele também informa que, apesar de existirem mulheres que sofrem de pedofilia, o número esmagador de casos é de homens.

"As mulheres tendem a usar os bebês e os filhos como bons fetiches, alvos de ternura e amor", comenta.

Fenômeno social
Independentemente de seu significado médico, o fato é que atualmente a pedofilia passou a ter conotação muito mais ampla. A antropóloga Laura Lowenkron, doutoranda de antropologia social do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), diz que o termo é hoje utilizado para descrever um fenômeno social.

"Graças à mídia, à Justiça e aos debates políticos, ele se refere indiscriminadamente tanto a atos sexuais com crianças, principalmente envolvendo pessoas famosas, estrangeiras ou de status social alto, quanto à pornografia infantil na internet", esclarece.

Ela ressalta que apesar desse uso ter se tornado corrente, ele é criticado por militantes dos direitos humanos.

"Para eles, isso é politicamente incorreto, já que associa as causas do problema exclusivamente a uma patologia em vez de levar em conta as dimensões sociais e culturais do fenômeno", explica Lowenkron.

Poluição e monstruosidade
Laura Lowenkron afirma que a pedofilia se tornou cerne de discussões poluidoras, extremadas.

"Existem efeitos disso no trâmite legislativo, pois a força emocional e política do tema frente à opinião pública torna mais delicado para um parlamentar criticar e se opor abertamente a um projeto apresentado em nome dessa causa", acrescenta.

Esse efeito seria oriundo da caracterização do pedófilo como um monstro sem compaixão, que na busca de prazer não se importa com os outros - seu crime não é apenas errado, mas totalmente perverso.

Luís Helsinger critica essa postura, lembrando que a grande contribuição da psicanálise foi mostrar que esses impulsos existem em todos nós.

"Quem já não pensou em matar alguém em um momento de raiva? Ao criarmos a imagem do monstro, ao contrário do que se pensa, tiramos responsabilidade dos perversos. Esse estigma, na verdade, os ajuda", explica o psicanalista, para quem a sociedade, embora condene, também estimula esse comportamento, exigindo que todos persigam o prazer ao máximo.

O teórico da comunicação Paulo Vaz, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concorda.

"O monstro ajuda a firmar a pedofilia como um problema de estranhos, quando, na verdade, ela ocorre com frequência dentro das famílias."

Ele observa que é fácil encontrar vídeos na internet de crianças fazendo danças sensuais estimuladas pelos próprios pais. O teórico acredita que está na hora de a sociedade reavaliar o problema para entendê-lo melhor.

"Será que ele é tão extenso quanto parece? Será que a melhor maneira de abordá-lo é, como fazemos hoje, por meio do endurecimento das regras e da expansão do conceito para que englobe adolescentes além de crianças?", questiona.

Talvez se analisarmos profundamente essa questão e afastarmos os mitos que a envolvem, possamos conseguir uma abordagem mais eficaz.




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