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Sul-africana Ntando Cele revira o racismo na 4ª Mostra Internacional de Teatro
14/03/2017 | 08:00
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Apesar de ser considerada uma das linguagens artísticas mais democráticas, o teatro carrega na história suas próprias controvérsias. No palco inglês do século 16, as mulheres não podiam ser atrizes. E, entre 1840 e 1890, o teatro popular nos EUA pintava atores brancos com carvão e tinta para interpretarem personagens negros. Para muitos, lutar pela descontinuidade dessas formas é essencial, mas, para a sul-africana Ntando Cele, gargalhar pode ser uma solução.

A atriz e performer traz seu Black Off na programação da quarta edição da Mostra Internacional de Teatro, que abre nesta terça, 14. O festival - que tem curadoria de Antonio Araújo e Guilherme Marques e que correu o risco de quase não ser realizado por falta de patrocínio - segue reunindo eixos temáticos e obras que flertam com a performance, a música, as artes visuais e o cinema.

A artista, mulher e negra nascida em Durban realiza um pesquisa que se divide entre dança, teatro, música e performance. No palco, ela encarna um alter ego inusitado, chamado Bianca White. E a figura se transforma na frente de todos: ela pinta o rosto de branco, coloca lentes de contato azuis, um quimono e uma peruca loira. "Bianca viaja pelo mundo para ajudar pessoas negras. Ela é uma aventureira e costuma adotar o comportamento e a cultura de outros países", ironiza Ntando. "No palco, não faço nada, só concordo e me correspondo com Bianca, no jeito como reage e responde. Às vezes, ela xinga, outras vezes pede um taça de vinho. No palco, faz gestos estranhos. Tudo para provocar um desconforto a plateia."

Situar Bianca como um estranha cidadã universal se concretiza em uma crítica que passa pelo racismo e suas reações no mundo. "Ela se veste misturando culturas porque não pretende ser nenhuma delas. Isso é tão arrogante!", diz. "Ocupar essa ?branquitude? sempre foi um privilégio. Você pode ser qualquer pessoa e andar por aí sem que ninguém te pergunte nada."

Mas, ao olhar para o passado das artes cênicas, Ntando nega que seu trabalho seja resposta ao black face. "É impossível dar uma resposta a isso. Não se trata de uma oposição, tampouco é o desejo de falar por todos os negros do mundo. Trata-se de uma tentativa de falar a partir da minha experiência, apenas isso, e o que ocorre na minha pele."

Após receber convites para desenvolver trabalhos em Amsterdã e na Suíça, Ntando reconhece as vantagens para Bianca. "Se você quer desenvolver um trabalho, é preciso conseguir financiamento e isso não inclui ficar na África do Sul." E essa condição de estrangeira permite que suas criações sejam constantemente transformadas, o que fortalece a personalidade debochada e divertida da personagem.

Atualmente, ela está desenvolvendo um novo trabalho que julga ousado, ao lado de atrizes suíças. "Estamos numa fase de levantar questões variadas de tudo o que nunca tivemos coragem de perguntar e que sempre tivemos receio, incluindo estereótipos", conta. "Já posso dizer que há muita música e dança. De alguma forma, tenho que me divertir e rir de mim mesma, porque na Europa é quase um grande negócio saber dançar, já que aqui não é fácil encontrar bons dançarinos e, de onde eu venho, todo mundo já nasce dançando", gargalha.

Ntando se apresenta no Itaú Cultural, mesmo palco em que ocorreu, em 2015, o debate sobre o black face presente no espetáculo A Mulher do Trem, dos Fofos Encenam. Na ocasião, a divulgação de uma foto da peça provocou protestos e o cancelamento da temporada. "Não sou expert em racismo, só sei da minha desconfortável experiência de caminhar por aí e ser olhada de modo estranho. Como o Brasil, também venho de um país que classifica e divide pessoas por causa da pele."

Programação

O trabalho de Ntando se une a um eixo da mostra que discute a questões raciais. Ao lado dela, estão duas estreias nacionais. Em Missão Em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa, 15 performers revisitam a obra do alemão Heiner Müller, sob a direção de Eugenio Lima. A história retrata uma revolta de escravos na Jamaica após a Revolução Francesa. Já em Branco: O Cheiro do Lírio e do Formol, o dramaturgo Alexandre Dal Farra busca um olhar crítico do branco sobre si na reprodução do racismo naturalizada focado em uma família de classe média.

Ainda completam a programação o espetáculo belga Avante, Marche!, que abre hoje a mostra no Teatro Municipal, o alemão Por Que o Sr. R. Enlouqueceu? e o brasileiro Para que O Céu Não Caia, da coreógrafa Lia Rodrigues. Por último, o eixo do teatro documentário abriga a montagem chilena Mateluna e uma mostra especial de Rabih Mroué (leia entrevista na página C3) com Revolução em Pixels, Tão Pouco Tempo e Cavalgando Nuvens. Três relatos vívido sobre cicatrizes deixadas pela civil libanesa.

4ª MOSTRA INTERNACIONAL DE TEATRO DE SÃO PAULO

Vários locais na cidade.

Informações pelo site www.mitsp.org Até 21/3

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.




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