Início
Clube
Banca
Colunista
Redes Sociais
DGABC

Terça-Feira, 16 de Abril de 2024

Cotidiano
>
COLUNA
Que atire a primeira pedra
Por Rodolfo de Souza
15/11/2018 | 07:00
Compartilhar notícia


A pedra escorregou morro abaixo, esmagando as moradias e seus ocupantes. Pesando toneladas, o maciço é insensível e nem reparou na dor e nas lágrimas derramadas por causa de sua travessura. Mas a pedra se exime de sua culpa quando nota os dedos apontando na sua direção. Alega que já tinha algum tempo habitando aquelas paragens, quando a primeira casa foi erguida a seus pés. Também que dormia sono profundo, sem perceber que se movia. Talvez o período que passara imóvel a tivesse deixado meio esquecida do significado da palavra ‘mover-se’. Claro que seu minguado pensamento rochoso não lhe permitiu deduzir ainda que a água, tinhosa que só vendo, derreteu o barranco e a deslocou, como vem deslocando através dos milênios.

Mais uma vez, no entanto, os sobreviventes contabilizam as perdas e choram os seus mortos, que nem tiveram tempo para pensar no sinistro que os levava de roldão. Mas é preciso continuar e tocar a vida. A tragédia em si só vem a engrossar a lista de tragédias atribuídas a São Pedro e sua mania de chuva.

Causa estranheza, inclusive, assistir à reportagem que a televisão tanto se esmera em exibir, e ver citados os nomes de autoridades que, segundo as vítimas de um modo geral, não fizeram a sua parte no tocante à segurança daquela gente. Logicamente que aqueles logo se manifestaram em sua defesa, alegando qualquer coisa que livrasse sua cara mais lavada do que o barranco dissolvido. E, no jogo de empurra, a culpa recaiu mesmo nas costas das pessoas que ergueram sua moradia em lugar onde o perigo se instalara primeiro.

Que atire a primeira pedra, contudo, o sujeito que nunca tomou medidas descabidas pela falta de alternativa ou de oportunidade. Vivemos, afinal, num universo em que a desigualdade social é aviltante, e não permite, por exemplo, que um determinado seguimento da sociedade habite locais onde as pedras permaneçam quietas em seus lugares, faça chuva ou faça sol.

Mas àqueles, a quem cabe zelar pela população, não se pode imputar responsabilidade pelo fato, uma vez que seu excessivo volume de trabalho não lhe concede tempo para pensar na gente humilde, esta mesma que agora corre, solidária, com baldes e pás carregados de entulho e lama. No peito, a ansiedade de encontrar alguém respirando debaixo dos destroços, chega a sufocar a alma. A cada sinal, o olhar aflito prende a respiração na expectativa de verificar se o organismo que vem na maca, lá adiante, não esteja metido num saco preto.

E a gente aplaude feliz quando desfila pela passarela de escombros a pessoa resgatada, premiada, pois, com mais algum tempo nesta vida.

Ao redor da tragédia, há um bairro inteiro abarrotado de casas, cada qual a espiar, medrosa, acima de seu telhado, as imensas pedras que a mãe natureza caprichosamente dispôs ali sem desconfiar que um dia existiriam países de sociedades injustas que muito se empenhariam para submeter seu igual à precariedade das encostas lamacentas.

Mas é preciso protestar, vingar os mortos, exigir condições dignas de vida! Mas a quem deve chegar o grito preso na garganta? Àquele que certamente ali esteve antes do pleito para enganar e angariar voto? Não.

Provavelmente lhe dará as costas e alegará fatalidade.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.