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Cotidiano
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Palco dos loucos
Por Rodolfo de Souza
20/09/2018 | 07:00
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E o sono se foi bem antes do romper do dia. É nessas horas, aliás, que a mente inquieta costuma viajar de um ponto ao outro, e visitar fatos que, com alguma constância, permeiam a nossa existência. 

É, também, esse o momento que ela escolhe para correr em busca do inusitado, merecedor de algumas linhas. Como o caso do sujeito que parou o trânsito numa grande avenida, e se tornou o protagonista daquela tarde que se findava na cidade movimentada.

Estava sem camisa e descalço o jovem imundo que portava um cobertor, da mesma forma, carregado de grossa camada de sujeira nele depositada em anos de peregrinação por ruas e cantos obscuros das áreas urbanas. Distribuía impropérios entre motoristas e pedestres que lhe dirigiam o olhar curioso. Uma visão nada surpreendente nesses nossos dias, não fosse o enorme pedaço de caibro que portava o tal sujeito, arma que ameaçava atirar, sem o menor constrangimento em quem ousasse encará-lo. A madeira, ainda nova, por certo que fora subtraída de alguma obra, e lhe servia agora para intimidar o outro que era parte de uma sociedade da qual ele, há muito, fora excluído.

Transtornado, o rapaz procurava deixar claro que não estava ali para brincadeiras. Não demorou, inclusive, para que atirasse o objeto num carro parado na fila grande que se formou por causa o semáforo fechado. Porque o farol tinha que fechar, evidentemente. O motorista, segundo o entendimento do moço e sua madeira, teria lhe dirigido olhar provocador e ofensivo, gesto indesculpável e sujeito a revide. 

E o imenso caibro pousando com estrondo no capô do carro, acirrou os nervos do homem que o conduzia, fazendo com que, num impulso de ira, deixasse o veículo e partisse em busca do agressor. Ainda ouvi um transeunte, solidário à causa do pobre, dizer: “Não judia não, parceiro”. Ouvindo-o ou não, conteve-se o dono do carro que, bem próximo do indivíduo, evitou dar-lhe um sopapo. 

Eu, que a tudo assistia, surpreendi-me com a sua atitude e com todo o episódio, embora tenha deixado tudo para trás quando o semáforo se abriu. A vida deve seguir em frente, afinal.

E foi a insônia da madrugada que me levou a rabiscar mentalmente algumas palavras, estas palavras. Considerei mesmo a possibilidade de escrever um texto que falasse do pitoresco que dá cor ao cotidiano, e que certamente foi inventado para suprir o cronista de farto material que, no fim das contas, acaba por se transformar em uma travessura literária qualquer que tem o poder de bulir com o sentimento de quem lê, como a história do rapaz com seu caibro, que jamais se imaginou personagem de uma crônica, sobretudo, uma que muito se empenhou para pintar um quadro que retrata a tragédia humana, pouco compreendida por quem vive dentro de uma bolha, ainda que no mesmo país. 

É a atual conjuntura que favorece a desigualdade social que agride com paus, palavrões e imagens da condição a que está sujeita uma imensa parcela da população desta terra. E, pelo que se pode observar, não há perspectiva de mudança em curto ou médio prazo, mesmo porque, as eleições que se avizinham não elegerão governos comprometidos em lidar com a questão. Darão as costas a ela como se não se tratasse de um flagelo nacional. E a miséria se perpetuará, fazendo do cidadão de bem eterno refém do homem com a madeira, senão o próprio. 

E a bizarrice a que estamos submetidos faz e continuará fazendo de nós, loucos com o caibro roubado, prestes a atirá-lo em alguém.




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