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Cotidiano
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Saudosa maloca
Por Rodolfo de Souza
10/05/2018 | 07:00
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Adoniram que me perdoe, mas não poderia haver título mais pertinente para esta crônica, uma vez que a inspiração que me bateu e permitiu a sua existência neste espaço nasceu a partir do drama de uma família que, como tantas outras, tinha como teto a grossa laje de um viaduto, a princípio, projetado exclusivamente para sustentar o ir e vir de veículos, mas que, com o tempo, passou a servir também de abrigo. As circunstâncias, pouco favoráveis a uma grande parcela da população, fizeram daquele pedaço gigante de concreto e ferro a sua moradia. Fazer o quê?

E, como forma de proteger a si e aos seus do olhar curioso de quem por ali passasse, o chefe daquela família levantou pequenas paredes, utilizando-se de alguns paus, uma lona velha e imunda e um plástico preto. Pronto. Dentro do recinto apertado e inconcebível já era possível conseguir alguma privacidade marido, mulher e um casal de filhos perto de 6 ou 7 anos. A precariedade da moradia, no entanto, não permitiu que sobrasse espaço para a dignidade.

Do semáforo vinha o sustento, o quase nada que os mantinha de pé. Abençoado por Deus era ainda o que, vez ou outra, parava para oferecer uma marmita quente à família que se preparava para mais uma noite de desconforto e fome. Graça divina que também lhes concedera como pátria um país quentinho, onde neve é coisa feita de algodão para enfeitar árvores de Natal, tão somente. 

Mas a oportunidade de habitação melhor não demorou a aparecer. Por intermédio de um amigo, o homem da casa arranjou, entusiasmado, uma sala num prédio ocupado por várias outras famílias. A alegria não permitiu sequer que reclamassem da dura escalada até o oitavo andar. Porque agora possuíam um teto de verdade, e a barraca de lona velha estava fora de cogitação, uns poucos degraus, em hipótese alguma, consistiam obstáculo intransponível. Além de tudo, a vista era de tirar o fôlego! O quê mais poderiam desejar?

E tinha luz elétrica ali, imagine! Luxo que vinha do emaranhado de fios que roubavam a energia dos semáforos. Tudo bem! A condição de vida não lhes permitia certos pudores, e era necessário deixar de lado algumas questões éticas se queriam permanecer vivos e lutando.

A pouca comida, conseguida também de porta em porta, era possível cozinhá-la fazendo uso de álcool ou de qualquer outro produto inflamável que estivesse disponível no local um tanto familiar àquela gente, habituada aos tapumes, papelões, caixas e toda sorte de quinquilharias jamais encontradas em residências das classes mais abastadas desta nossa sociedade de contrastes. Mesmo assim, era o lar. Talvez o melhor lugar que a família habitara desde a sua formação. Até os filhos estavam contentes com a companhia da molecada que corria à solta. Tudo era felicidade, afinal, no prédio grande do Centro da metrópole de milhões de apartamentos de formatos, cores e cheiros nunca imaginados por eles. 

O que a família não sabia, contudo, é que a euforia duraria pouco, que logo cederia lugar á tristeza.

E a noite, por fim, trouxe o fogo. Pelas mãos de quem, ninguém sabe. Talvez o velho curto-circuito fique novamente com os créditos. De qualquer forma, não houve quem parasse para pensar com seriedade no assunto quando a correria se desencadeou escadaria abaixo, num atropelo desesperado até ganhar a rua. Também, naquele momento, ninguém se deu conta de que se iniciava o 1º de maio, dia em que se comemora aquilo que lhes fora negado e, cuja falta, condenou-os a viver na maloca que ruía bem diante de seus olhos incrédulos. 




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