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Quinta-Feira, 18 de Abril de 2024

Sonho bom
Por Rodolfo de Souza
18/01/2018 | 07:00
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 O homem deixou a casa lotérica com o papel da aposta nas mãos. Não me notou parado ali. Caminhava devagar, observando, embevecido, os números que lhe enchiam o coração de esperança tamanha, que era capaz até de imaginar a sua sequência igual à que partiria do globo para a mesa, onde as bolinhas que lhe transformariam a vida seriam caprichosamente dispostas.

No semblante, um sorriso imperceptível iluminava o rosto da pessoa que finalmente deixaria uma existência de trabalho duro e pouco dinheiro para uma corrida à fartura, ao abraço de tudo o que poderia ser adquirido com o tão sonhado prêmio. Não sabia que o seu sorriso também iluminava o lugar repleto de pessoas que sequer o notavam.

Era moreno o tal homem, que aparentava ter passado dos 50, e que trazia as marcas do sofrimento de pessoa humilde, habituada aos rigores de uma vida de privações. Trajava-se, logicamente, com a simplicidade bem própria de alguém que, ainda muito jovem, se descobriu habitante de um mundo caótico, dado à injustiça social.

Seu andar lento garantia-lhe fixar o olhar no papel e ter a certeza de que ali estava a liberdade, a ruptura com um mundo nefasto que cercara de dificuldades toda a sua existência. Representava, pois, o anseio de milhões de pessoas dotadas da mesma esperança renovada a cada semana. Só o seu sorriso fazia a diferença, e contagiava de felicidade quem por ele passasse, mesmo que não o percebesse, que não soubesse de onde emanava tanta luz.

Mas este cronista de longa data lá estava para conferir. Não o bilhete, provavelmente não premiado, mas o sorriso oriundo de uma chama que viera para acalentar, pelo menos por alguns dias, aquela alma sofrida que já se imaginava desfrutando de uma liberdade nunca antes experimentada. Na verdade, não tinha a menor ideia do que era uma vida de fartura e de luxo. Até porque, só um pouquinho lhe bastava. Mas e se o prêmio for gordo?! Por Deus, o que fará? Por certo que ajudará toda a família e alguns amigos também. Porque estes por certo que aparecerão, ora pois! Afinal de contas, amigos é o que tem de sobra um milionário.

Talvez tudo isso vagasse pela sua mente, que ainda sorria um sorriso diferente diante do papel. Não me espantaria, inclusive, se eu descobrisse finalmente que o ganhador fora aquele homem. Parecia que previa a proximidade do fim de uma jornada de sacrifícios vãos e muita amargura. Não sabia exatamente como viveria a partir de então. É provável até que lhe metesse medo pensar a respeito.

E eu permanecia ali, divagando com o tal sujeito, quando fui repentinamente censurado pela minha mente, que costuma seguir a lógica das coisas. Acabou por me revelar, a tirana, que a face alegre do indivíduo vinha tão somente da imaginação que o levava a pensar em como seria uma vida assim, excepcionalmente bela, desprovida de toda tristeza que só um trabalhador que sua a camisa por uns trocados é capaz de entender. Como seu eu não soubesse.




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